| por João Daniel G. Oliveira |
TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 2009
NO BLOG O TEDIOSO ARGUMENTO
Um dos maiores fenômenos urbanos contra os quais pouquíssimas cidades ainda se encontram vacinadas é o Fenômeno do Som Automotivo. Este tipo de ocorrência é facilmente localizável aqui em Feira: em qualquer esquina ou porta de residência inconveniente (eu ia escrever bar, mas sempre põem a imagem da “esquina” ao lado da do “bar”, o que me é tão incompreensível quanto à velha história de sempre que falarem de jazz automaticamente comentarem sobre blues, de modo que resolvi não escrever “bar”, muito embora não tenha tido intenções de eufemizar a expressão “bar” trocando-a por “residências inconvenientes”, pois são dois estabelecimentos completamente distintos – há bares e há residências inconvenientes, assim como há bares inconvenientes e residências apenas) podemos perceber, às vezes da pior maneira possível, uma agressão inconseqüente aos nossos ouvidos. No meu caso, a agressão se dá devido ao número intragável de decibéis que costumam arrotar através daqueles canhões de som; desgosto também da forma como a música, no volume altíssimo a que é sujeita, perde da sua nitidez grosseiramente, transformando-se num pudim ruidoso gelatinosamente macabro. Mas a música original me é bem deleitável. Alguns, entretanto, se revoltam justamente não pelo volume nem pela ética da equalização do som, mas pela própria música de fato, que se lhes assemelha de um mau gosto formidável.
Não sei como o Fenômeno do Som Automotivo funciona nos outros estados do Brasil; mas, na Bahia – em Feira de Santana, a Gloriosa –, os estilos musicais predominantes são o Pagodão Baiano e o Arrocha. O que gosto e conheço de Silvano Sales, o João Gilberto do Arrocha, não é de álbum baixado na net e muito menos de canções escutadas na rádio, mas do som dos carros na rua. O tanto de vezes que já ouvi a novíssima versão dele da música de abertura da novela Paraíso, de Victor & Leo, não é quantificável. Memorizei dezenas de refrões de pagodões graças a esses carros. Em Cabuçu, terra que é e sempre será extensão espiritual de Feira, o Fenômeno do Som Automotivo já beira ao nível do transcendental: lá, existe toda uma postura a ser religiosamente seguida, cuja origem ainda é um mistério, mas que preza por um bom pagodão na praia advindo de um carro potente.
No imaginário urbanístico de Feira de Santana, o Som Automotivo tem presença marcante – para alguns, traumática. Esse padrão de aplicação sonora reformulou o estilo Pagodão: pelo menos para mim, o Pagodão Baiano é um estilo que se cristaliza fundamentalmente em três raízes profundas: 1) a aversão a estúdios e álbuns gravados nestes locais 2) a adaptação integral a shows ao vivo e a gravações ao vivo, confluindo para improvisações de alternância rítmica e mantimento de mesma linha melódica, bem como interações constantes com o platéia [link corrompido – vídeo do Todo Enfiado, professora primária, blá blá blá] e 3) a execução ininterrupta de gravações ao vivo em carros com som automotivo no volume mais alto possível, “recheando” a música original de ruídos que tornam certas passagens ininteligíveis. A reformulação a que me refiro se encontra neste ponto 3; não consigo mais conceber uma música do Pagodão Baiano sem imaginar essa poluição sonora e sem imaginar uma faixa do disco arranhada e depois o barulhinho da trava automática e depois um sujeito entrando no carro para passar a faixa ou direcionar o controle remoto para que este funcione.
Por fim, existe o último motivo para que uma vítima do Fenômeno se sinta agredida: é o susto medonho que sentimos quando ouvimos uma música que não seja nem pagode, nem arrocha. E, mais ainda, se for uma música não-comercial. Levei um susto desses, incomparável, quando andava pela Conceição I.
Trotava eu às pressas, sob um Sol terrífico, desviando da churrasqueira de um bar (esse é outro fenômeno, o Fenômeno da Fumaça das Churrasqueiras de Bar em Pleno Verão de Sol Quente Que Esquenta Ainda Mais Quem Por Ali Passa – quem nunca se revoltou com aquela churrasqueira que fica no caminho da Rodoviária, na rua mais sacana da história, em cuja extremidade oposta se encontram os fundos do Hipermercado G Barbosa, donde saem os cheiros de peixes podres e restos de alimentos mais fétidos?), e dobrava numa rua estreita, quando ouvi e estaquei: um carro com som automotivo mega potente, passava, numa lentidão filha da p***, tocando Fidelity, de Regina Spektor. Ora: essa era uma música que eu já conhecia há tempos! Eu já tinha sido fã de Spektor e até já tinha largado de ser! É uma música que acho bela e admirável! E Regina Spektor, coitada, na época ainda desconhecida, foi tachada de indie e se deu muito mal por causa disso! Porém, a Entidade mais mefistofélica da história da humanidade, a Rede Globo de Televisão, tinha posto essa música na trilha sonora da novela das oito A Favorita. E foi justamente nessa época que, passando pela rua principal da Conceição, eu ouvi Fidelity sendo subjugada pelo Fenômeno do Som Automotivo em Feira de Santana! Estarei sendo eu precipitado em dizer que, graças à Globo, uma música de Spektor foi ouvida em toda a Conceição?! E qual não foi a surpresa em, ao invés um conglomerado de ruídos sonoros que penava para se fazer entender algo como “que ovo é esse, Hambúrguer? / Parece até de avestruz” ou “Tô no celular / Falando de um bar”, ouvir “And it breaks my ha-ah-ah / ah-ah-ah, ah-ah-ah / ah-ah-ah-aart”!
Por alguns dias fiquei preocupado: senti que a cultura de Feira estava sendo ameaçada pela Maligna Emissora. Mas aquele caso foi raro, isolado, e nunca mais se repetiu, pelo menos diante de mim. Será que, aqui em Feira, ouvirei algum dia num volume insuportável um Clair de Lune de Debussy? Não creio que a probabilidade seja zero; afinal, essa composição toca a todo momento na novela Alma Gêmea (atual “Vale a Pena Ver de Novo”), e sempre nas piores e mais detestáveis cenas – infelizmente.
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