|Por Maurício Correia|
Não sem assombro percebo como alguns episódios possuem a capacidade de tocar em feridas tão expostas da nossa condição humana, tato da intrincada força da simbologia, da alegoria e do exemplo; não me refiro aqui, como capital simbólico, à recente morte dos 10 ativistas, vítimas do ataque do exército de Israel a uma frota de navios que se dirigia para a Faixa de Gaza carregados de suprimentos; poderia citar um número razoável de casos recentes de conflitos armados ou mesmo acidentes em que a cifra macabra dos mortos foi em maior grau e gravidade do que o ocorrido nos mares do oriente médio, sem que a repercussão levantasse tantas questões cruciais para a política de convivência entre os povos.
A minha leitura deste episódio é reducionista, arquetípica; de outro modo, não poderia opinar em tão poucas linhas. Sobre detalhes dos fatos (ah, os fatos...), o leitor poderá se esbaldar com inúmeras versões, com direito a imagem, som e movimento no You Tube. Tentarei aqui partir do que tem sido silêncio até agora.
Inicialmente, interpretei o ataque israelense como um recado claro de que Israel pode fazer o que quiser, que não se impressiona com “condenações”, “lamentações”, seja dos EUA, com o qual mantém uma aliança tão misteriosa e poderosa quanto a que dizem possuir com Javé, da ONU, da União Européia, etc., etc. Os conservadores israelenses, que mantém o controle do governo, sabem que não haverão sanções mais graves ao país, afinal, os EUA têm poder de veto no Conselho de Segurança da ONU e não tergiversaria em utilizá-lo para evitá-las, como o fez em diversas outras ocasiões. Ademais, a diplomacia israelense, por vezes, regozija-se com as reações unânimes contra ações do país, pois que fazem questão de incluir, ainda que sutilmente, como componente subliminar um suposto anti-semitismo, que em estado de latência, contamina o mundo; aliás, a vitimização é sempre um grande álibi, em qualquer circunstância, apesar de me parecer um contra-senso pensar que uma potência com economia capitalista desenvolvida, que concentra a maior parte da grana com fabricação e comércio de armas de guerra, que possui a bomba atômica apesar de manter um profundo silêncio sobre o assunto, possa se colocar em tal papel num mundo muito diferente do que era durante a segunda guerra.
Mas posso estar equivocado. O ataque, classificado por alguns países e por organizações internacionais não alinhadas como “terrorismo de estado”, pode ter sido também uma reação automática, no entanto, reveladora da forma como o exército israelense é treinado para responder com canhões a agressões de estilingues. Que o digam os Palestinos, exilados em seu próprio território, submetidos a uma série de restrições comerciais que sufocam o seu desenvolvimento e a sua autodeterminação, além da violência cotidiana, que vez ou outra estoura em uma crise que assassina milhares de civis, taxados genericamente de “terroristas”, sem que a comunidade internacional não faça mais do que “lamentar” o episódio e clamar por “paz” na região. Inclusive, a primeira reação oficial do Estado de Israel foi taxar os tripulantes da Frotila da Libertat, desarmados até os dentes, como “terroristas” que atentam contra a segurança interna dos israelenses ao se aliarem à causa palestina.
A prevalecer a tese de que foi apenas uma ação desastrada do exército, como classifica a maior parte a imprensa de Israel, não poderia haver momento menos oportuno para o país e seus aliados, já que os EUA, taxando como “ingênua” qualquer tentativa de acordo com o Irã, estava por convencer todas as potências atômicas a seguir adiante na idéia de aprovar sanções comerciais contra o país comandado pelos aiatolás. Agora o foco muda, constrange Barack Obama a “lamentar” a ação de Israel, e se não fornece munição direta aos argumentos dos que são contra as sanções, ao menos os faz ganhar tempo no jogo diplomático. É como se Israel tivesse feito um gol contra no final do segundo tempo, levando a partida para a prorrogação.
Mas desconfio mesmo de qualquer hipótese, escrita aqui ou por outros que já se manifestaram. Como havia sugerido antes, quando certos mistérios nos parecem impenetráveis, nos resta senão conjecturar; posso citar aqui dois exemplos: sobre o mistério da Santíssima Trindade, ainda hoje não consegui juntar as peças, e suponho – sempre supondo – que a resposta reside exatamente no sagrado mistério, o que torna as coisas mais simples para quem crê e para as instituições que nele se sustentam; outro exemplo de mistério intangível é como toda essa confusão em torno do ataque israelense, grave, de qualquer ponto de vista do direito internacional, vai ser logo esquecida depois de alguma “carta das lamentações”, cuidadosamente elaborada e, na seqüência, ser acondicionada numa imensa sala-arquivo dos assuntos misteriosos e intocáveis, que a ONU mantém em sua sede nova-iorquina. Sondando mistérios, ignorando o que nos ignora, a vida segue neste século XXI com as “ameaças do terror” no calcanhar da civilização.
1 comentários:
digressão:
olhe, não penso que esse fato vai estar fadado ao esquecimento, não. ou, pelo menos, não com essa facilidade. feridas são sintomas de que algo não está bom. está lá. latente. carece de um novo desfecho, quando o anterior não mais convém ao enfermo. acho que essa, sim, é uma alegoria válida quando se pensa na 'condição humana'.
e o prazo para esse 'acordo de cavalheiros' que o mundo arranjou para esses povos está acabando. para nós - o 'povo de cá' - também. esse e outros fatos são alertas, apesar de toda a sua gravidade.
lanço mão da hipótese de que tudo o que diz respeito ao 'terrorismo' não consiste em um mistério impenetrável, desde que encontremos a disposição (ou, quem preferir, que chame de papel histórico) de ligar os pontos desse velho jogo da humanidade, representado pelo novo rearranjo de forças que está para acontecer. quando? como? ainda não sei. não tenho tanta capacidade para fazer projeções. mas é no cotidiano que vamos construindo a história que queremos.
Postar um comentário