Entre vícios e refluxos cotidianos




Era apenas um dia sobreposto a outro. E no seu pensamento não havia nada novo. O mundo era tragável. E as centelhas da realidade eram como páginas lidas sem entusiasmo.

A noite chegara com toda sua costumeira solidão, embora seus olhos estivessem cheios de pessoas movimentando-se vagarosamente naquele jardim negro onde estava. A beleza quieta das flores noturnas saltava sobre seus olhos. Compactuado pelo frio, a noite o tornara perplexo. Gelidamente perplexo. Aquela sensação de frio transgredia a rotina de sua velha visita ao parque. Preocupou-se. Já fora do costume, desejou ser aquecido. Talvez fosse necessário suplicar a algum passante, a gentileza de um abraço. Ou, caso não produzisse coragem, devesse esquecer o desconhecido daquela situação, e costumar-se-ia ao sentimento de estar gelado por dentro, e agora, por fora. Divagou. E reparou nos transeuntes com a crueldade típica. Porém, temeu o que pensou. Viu uma velhinha, e temeu o que havia sentido.


A velhinha estava, tragicamente, solitária sobre o banco de madeira. Achegou-se próximo a senhora, de rosto deformado pela gravidade, e pediu com gentileza tosca para que lhe autorizasse sentar ao lado dela. A velha balançou a cabeça que sim com ar de arrependimento. Sua pele enrugada, suas mãos religiosamente sobre as pernas frágeis, comovia Antonio Mello. Talvez infeliz por ter alguém para aborrecê-la ou talvez compenetrada demais para esboçar qualquer reação definitiva. Mello, de repente, se viu na tentação de começar uma conversa com aquela senhora assombrada. Sentiu-se envergonhado por ter uma vontade audaciosa dessa. Porem falou, ainda sem jeito, que estava frio, rindo abestalhadamente. A senhora, dotada de um olhar estúpido, grunhiu como resposta. Respondeu como quem conta um segredo, ou melhor, como quem esconde um. Ambos se olharam insólitos.


Repreendeu-se, por alguns instantes, para ceifar as duvidas que lhe vinha a tona. Estava num estado precário de espírito. Carente do vulgo. Pouco vivo. Rangendo os dentes de frio, de horror, de medo, pudor. Desconcertado com aquela situação, Antonio quis ocupar-se com devaneios. Nesses devaneios, a senhora reclamava de sua dentadura, ele sorria afoito e suas indagações desciam ladeira abaixo. Confortou-se em pensamento. Não mais que de repente, investigou de fora e viu-se um belo rapaz – talvez executivo - trajando suéter preto, botas que não combinavam com as calças colegiais e uma expressão infertilizável. Ao seu lado, uma velha de casaco cinza – porque senhoras no frio usam cinza? – uma saia escurecida pela noite, de olhos azuis recatados. Antonio Mello, já com semblante pouco identificável na noite, saiu apressado. Não se entregou à frivolidade de seu desejo, vestiu um conhecido tédio, apanhou uma garrafa no seu bolso e bebeu aquele liquido doce com um sorriso espalhado. Tomava licor de cereja como se o exagero de sua ação o preenchesse. O licor, a fuga e as dúvidas pendentes lhe fizeram lembrar que aquele era apenas mais um dia sobreposto a outro e que, viciosamente, o mundo era tragável feito o cigarro de sua carteira...









 
Bruno Silva

*Bacharelando em Direito pela UEFS
Universidade Estadual de Feira de Santana

5 comentários:

4 de abril de 2010 às 12:13 Anônimo disse...

delícia de texto. é daqueles que a gente segura um pouco mais antes de soltar o ar.

4 de abril de 2010 às 15:39 Le Monde et Les Gens disse...

"O mundo é tragável".
Lindo o blog da revista de vocês...
Uyatã, eu esqueci teu e-mail, nunca peça p uma pessoa dormindo decorar alguma coisa...tu pode dizer novamente?
Beijos, Déborah.

6 de abril de 2010 às 20:33 Unknown disse...

ahuaehueahaeuheau

Perfeito.

9 de abril de 2010 às 12:28 Tiago disse...

Passei um tempo distante, mas fico muito feliz em reencontrar-me com/em seus textos.

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