Meio Fio ou o Documento Histórico

|por Camilo Alvarenga|

Diante do tempo um estranho. Em terra natal, estrangeiro. Diante do amor irresponsável, inconsequente. Agora, luz do céu, é dia claro, e cruel a emoção, se desmancha, dissolve lágrimas, lamenta um grito, e um é de mais.  Sobriamente o sistema recompõe as suas armas, e eu, sozinho, cultivo cada vez mais escudos de palavras.

Rende-se a circunstância, revela-se o inesperado, sem tardar a alvorecer. Refaz-se das ruínas, liquefeito pensamento, absorto em vendavais, reflete inda mais as ideias de então. Só, “beijo o rosto bexiguento da chuva”, e transpareço uma ingenuidade que suscita pena ou raiva; sou filho da ilusão, porém seu prisioneiro (os seres precisam amar).

Talvez o texto mais sincero, não traga respostas convincentes ou dúvidas de rápido resolver-se, mas o poeta em processo, o poema piada, escapuliu do terceiro andar do edifício, e deu de cara com o meio fio, que lá em baixo o esperava, solene, inerte assim com tantos adjetivos que cansa olhar pra ele.

Nele, no meio fio, foram expostos sacos de lixo dos moradores, suas fotos de áureos tempos, ele, o valente meio fio, foi batente, cone para estacionamento, cama para o sono dos justos, também palco para os seresteiros das madrugadas das quintas, pelo visto muitas opções. Sim. Multipolar esse meio fio, transcendental raio que separou o poeta de sua vida.
Luar da janela, lavanderia, tabacaria, sorria: estás estendido ao pé do meio fio, sim, era uma quina e tanto, um baque e tanto, mas e agora, o que é, tudo aquilo: o condomínio, suas janelas, o edifício, seu joão-porteiro-guarda-gerente-da-contas-mestre-de-obras-anfitrião-dos-novos-velhos-sempre-moradores. Memória, cinema, sensação?

Os jogos de escada, na varanda, no porão, nas grades, parapeito, ponte direto ao cais. A porta da saída foi escancarada, o baú foi descoberto, a fada perdeu o encanto, Peter Pan agora é Capitão Gancho. Mas ele, o meio fio-condutor conduzindo nossa realidade, apontou para a próxima estação, no estéreo, procura-se a frequência, e a viagem em meio à multidão de móveis, utensílios para o lar, carrega “de cor” o sonho escrito em parcas páginas, sonhado a quatro mãos.

(...)

Mas ainda hoje lá está ele, nosso elegante meio fio, irresoluto, incrédulo, contido, conjurando forças para atravessar a estreita rua da travessa Jurema. Testemunha de ânsias, contador de energia muro ao lado, um pé de acerola, uma esperança posta a prova, uma confiança desconfiada no futuro, mas o meio fio resiste, ele é frio, feito de metal-plástico, adornado de belos pisos, concreto chão, onde lhe pisam bem forte, calcando os pés qual se esmagam as baratas.

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