Texto Ed Samper*
Arte Don Guto*
Havia uma mulher que colhia panos das bordas de uma lagoa que agonizava por sabão e sapos. O cheiro não era de mar, o sabão já não tinha cheiro e a mulher colhia sapos mortos das bordas de suas roupas fétidas. Não eram suas as roupas: lavava trouxas daqueles que passavam cheques que ela deixava acumular para ir uma única vez ao banco para ir uma só vez às compras que alimentavam seus nove que não tinham pai cuja existência fora levada pelo compadre Bento numa discussão em meio a retângulos brancos marcados por diminutos círculos pretos, goles de malte com cevada e golpes de peixeira...
Teve de escolher outro ponto daquele doce mar inerte cercado por dunas mortas e vegetação rasteira que empurrava as palmeiras mais para o céu. Teve de arear aqueles panos que não eram seus, mas mesmo assim teve de ensinar o ofício à filha do meio que se divertia com os batráquios esturricados ao seu redor. Sua pedagogia pleiteava o convencimento pelo costume do ato contínuo de acordar antes do galo e rumar algumas milhas até a justaposição do sol com o horizonte em algum meado do crepúsculo. Os peixes foram decantados antes das águas.
E perdeu a paciência com as traquinagens, espancando com uma peça ainda longe de estar enxuta, preferindo não causar hematomas no lombo e na cara; revertia-se em choro o enlameado mormaço que grafitava os primeiros relâmpagos ao sul daquela surra. Apanhava com o cadáver que não mais coaxava em suas diminutas mãos trêmulas e, por respeito, não tentou fugir, parando até de soluçar, atendendo à solicitação para que engolisse o choro, o que fez com um pouco de sal das lágrimas e um pouco de sal do suor, recheado com um naco da língua. Sua pedagogia pleiteava o convencimento pelo costume do ato contínuo de acordar antes do galo e rumar algumas milhas até a justaposição do sol com o horizonte em algum meado do crepúsculo. O que restou do sapo fora arrastado para além um pouco da margem, simulando afogamento.
A mão doía um pouco, talvez pelo ato sempre contínuo de esfregar as vestes de outrem, talvez pela sova, ou mesmo pelos cortes ao tratar a carne com ossos para o almoço. Porém, apesar de algum luto e tanta dor, ainda estava solícita para o trabalho, rumando para uma das três entregas que deveria fazer na semana, talvez a última dessa freguesia, pois havia muita reclamação da última remessa que apresentava imprecisos pigmentos vermelhos no alvor dos tecidos. Deixou para trás os seus agora oito mastigando nervos e embrenhou-se numa caminhada de algumas milhas com um embrulho de pano sobre sua cabeça. Os olhos apaziguados, os calos marejados e os pés um tanto trôpego. Enquanto cruzava os atalhos, topou com o compadre Bento solto por Alvará, aguardando julgamento; na espreita daqueles olhos ela se aproximou para um beijo, ameaçou revelar sua autoria, mas rechaçou o choramingo daquele homem reduzido, refazendo seu caminho, pois já havia eliminado a culpa por afogamento.
Ao chegar ao número 11, viu uma grande caixa amarronzada que continha em sua frente o desenho de uma máquina leucoderma, possivelmente mais rápida do que ela, prostrada num poste juntamente com sacos pretos. Nem quis deduzir, e cruzou o portão enferrujado já sem semblante. Na cozinha, respirava como de costume quando percebeu uma mulher gorda cujas bolsas ao redor dos olhos empurravam seu rosto ovulado cada vez mais para o chão, trazendo nas mãos um daqueles cheques para ser juntado e alguns pêsames e lamentos. Pela boca também cuspia reclamações devido ao seu esquecimento por aqueles que com ela vivia, para em seguida se despedir apontando para uma pilha de pratos do almoço que há pouco ocorrera. Enquanto ouvia, já longe, promessas de recomendação daquela robusta antagonista-comparsa, lembrou-se que tinha esquecido de guardar o seu próprio prato de comida, deslocando-se sem firmeza por onde não havia mais dunas.
* Ed Samper é bacharel em letras pela UFBA e (quase) mestre em cultura e sociedade pela mesma instituição.
** Don Guto faz parte do Conselho Editorial da Transa Revista.
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