|Por *Marcos de Souza|
In memorian de Louis Pavageau
com atraso e certo pesar
com atraso e certo pesar
Projeto em conjunto com a cooperativa de artista feirenses GEMA/2009: Out door trazendo a inversão do mapa mundi/UEFS |
Agosto de 2010: há aproximadamente um ano decolava nestas terras semi-sertanejas um poeta urbano cuja linguagem, dedos, mãos e óbvio poética ainda se podem precariamente rastrear pelos lugares onde sua presença outrora iluminou. Louis Pavageau é, era o seu nome dado que em outubro próximo fará um ano de sua súbita e precoce morte. Entretanto, como dissera, sua presença nota-se, mesmo que ameaçada de extinção, nos locais pelos quais sua poética geométrica imprimiu seu risco. Seu último projeto – Ligne Rouge – sarampeou os até então ocultos e cinzentos sítios da urbe feirense: caixas da geradora de energia elétrica, mínimos muros abandonados.
Sua técnica: colagem com fitas branca e vermelha; sua tática: tomada de assalto a lugares que em tese não mexiam e/ou não mexem com o metabolismo da cidade e nem com o cotidiano dos seus. Ao modo dos já clássicos grafiteiros urbanos, Pavageau tatuou – como que com hena: provisório, impermanente, fugaz, efêmero – as linhas da sua poesia no corpo troncho da cidade que sem resistência cedeu-lhe o dorso.
Suas interferências não nos revelam espaços obscuros, antes mostram-nos o quanto de luminosidade – capacidade de realização, potencialidade? – há nos lúgubres e quase – ou totalmente – imperceptíveis cantos silenciados do centro feirense; sua obra não decora os espaços, antes os alinha à desordem criativa do contrato/conflito que rege o homo urbanus e seus hábitos.
Sua técnica: colagem com fitas branca e vermelha; sua tática: tomada de assalto a lugares que em tese não mexiam e/ou não mexem com o metabolismo da cidade e nem com o cotidiano dos seus. Ao modo dos já clássicos grafiteiros urbanos, Pavageau tatuou – como que com hena: provisório, impermanente, fugaz, efêmero – as linhas da sua poesia no corpo troncho da cidade que sem resistência cedeu-lhe o dorso.
Suas interferências não nos revelam espaços obscuros, antes mostram-nos o quanto de luminosidade – capacidade de realização, potencialidade? – há nos lúgubres e quase – ou totalmente – imperceptíveis cantos silenciados do centro feirense; sua obra não decora os espaços, antes os alinha à desordem criativa do contrato/conflito que rege o homo urbanus e seus hábitos.
Sempre, desde que aqui estou, ouço dizer da transitoriedade e do passageiro como aspectos emblemáticos desta cidade de Sant’Ana. Longe de serem metáforas originais, trata-se, creio eu, de identidades reclamadas pela cidade e pelo sujeito contemporâneo globais. Sendo fato ou ficção, notável mesmo é como a arte de Louis entra em alinhamento com esta idéia, ou seja, a urbe pós-moderna, vista como um tecido elástico em permanente deslocamento, malha quente-ebulição onde a melhor metáfora cromática tomo de empréstimo de Ligne Rouge. Aliás, o artista mesmo me parecia um indivíduo um tanto quanto vermelho: sua pele cáucaso-européia invariável e indisfarçadamente irritada, pois que aqui exposta a sóis de nossa sub-equatoriana primavera, compunha degradé com o sempre presente maço de cigarros hollywood de filtro marrom. Trazido pelo Instituto Sakatar/BA, pelo projeto de residência artística e por ocasião do ano da França no Brasil, sua presença não durou mais que três messes.
Louis nasceu em Calais, na França, em 1982, mas sempre viveu em Saint Denis, na ilha de Reunião, um departamento ultramarino francês situado no oceano Índico, entre Madagascar e as ilhas Maurício. Diplomou-se em Artes plásticas (2003) e pós-diplomou-se em Expressões artísticas (2006). No catálogo de Ligne Rouge lê-se: vit et travaille entre Paris et Saint-Denis de La Réunion. Esta experiência – o nomadismo – é evidente em suas performances e no que estas remetem à idéia de sinalização. Não à toa as fitas utilizadas pelo artista são tomadas de empréstimo do serviço de segurança pública de sua terra natal. Curioso também é notar que o vermelho fulgura entre nós – além de representar revolução/paixão – nas placas de trânsito, nos fundos de caminhões e carretas; o vermelho e o branco ainda estampam os serviços de salva-guarda públicos: bombeiros, brigadistas, agentes da saúde, salva-vidas. Embora haja o branco em seu trabalho, este parece, para além das usuais metáforas – espiritualidade, paz, inocência, pureza – de-limitar e con-tornar o tão extravagante e vazadiço vermelho.
Dentre as estratégias de Pavageau há a apropriação – além da tática do grafite e do uso das fitas de segurança – da logomarca da coca-cola, cuja fonte alfabética empresta forma ao projeto deste francês cosmo-pós-mito. Há, de certo, a apropriação dos signos da coca-cola para além da forma de sua letra. Mais que um diálogo com o símbolo máximo e global do capitalismo atual, seu consumo e sua moda, a arte de Louis quer sobretudo sinalizar e, agora sim, sinalizar tanto como a coca-cola e seus artifícios de popularização.
Pavageau, não somente enquanto artista, mas sobremaneira enquanto artista da rua e artista na rua – esta o Outro do lar e por definição e direito indomável – se inscreve do mesmo modo que a coca-cola na lista da mitologia pop do homem contemporâneo. E aqui peço licença para antecipar uma pequena e possível, embora improvável fábula: entre as ruínas duma cidade submersa encontrarão como parte dos vestígios de nossa pop-produção os quadros (out of doors) da coca-cola e os anônimos trabalhos de pavageau, e eu espero que compreendam que estas marcas e signos falam, entre outros aspectos, da informalidade e do anonimato do espaço público de nossa época. Aspectos que implicam em um espaço erotizado, espaço do palavrão permitido, que tem entre suas regras a diluição e a dissipação destas mesmas regras. “Espaço” que “historicamente sempre ambientou o conflito e sempre apareceu, em dias mais urgentes, não tão somente como via de acesso físico ou mero suporte para o fluxo de gente e máquinas que transitam frenéticas e indiferentes”. Espaço que, muito embora exerça certo controle social sobre os seus, está de algum modo consubstanciado, do ponto de vista do censo comum, num “tudo pode acontecer”, sendo experimentado com um quê de aventura e odisséia tão coletiva como individual.
Em suma, a arte de Pavageau estabelece permanente diálogo – consenso, dissenso, tensão – com este espaço público; diálogo agenciado por dois eixos: curto espaço/tempo breve. Curto e breve, porém intenso e apaixonado. Obras feitas para vibrar; feitas para durar o tempo-espaço dum brilho, dum lampejo, duma sinapse, duma paixão. Paixão reativa ao calculado cinza e ao relativo abandono do espaço público em questão; reação, ainda, à arte museológica, brinquedo da classe média, encarcerada nas galerias. Sua produção artística dialoga direta e eficazmente com “os agentes sociais que habitam e atuam na clandestinidade” compondo com estes um padrão de eventos que ritualizam e celebram a rua enquanto espaço meta-funcional, promovendo, quiçá, uma provisória trégua no conturbado “céu público onde a tempestade social toma forma” e as “nuvens de gente faminta de cidadania”¹ despistam o vazio de uma apressada existência. Apressada como foi a de Louis Pavageau.
mínimos muros: composição óptico/cubista na caixa da geradora de energia elétrica no centro da cidade de Sant’Ana /2009
Louis Pavageau em vermelho e branco: aqui qualquer semelhança não é mera coincidência
¹. Notas tiradas do ensaio premiado de Gaio Matos. Fonte: catálogo de Artes Visuais 2007/2008 - FANCEB/BAHIA.
*Marcos de Souza: quitodesouza@yahoo.com.br/2010
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