|Karine Braga de Queiroz Lucena*|
Há quem diga que o caso Elisa Samudio ainda repercute. Crimes bárbaros explorados nas mídias têm a obrigação do alarde com data de vencimento. É claro que, se fôssemos chorar todas as estupidezes humanas, simplesmente não teríamos mais outra coisa a fazer. No entanto, concordo com Nelson Rodrigues quando diz que “a grande dor não se assoa”. E, ao evocar nosso grande cronista, quero chamar atenção à dor da família, tolhida do direito de enterrar um ente amado.
Dia desses, enquanto discutia o tema da violência com meus alunos de Redação, houve um deles, entre o gaiato e o ponderado, que afirmou serem essas coisas “normais”, visto que “acontecem todos os dias”. Talvez muitos de vocês também pensem assim e chego a conjecturar que necessitamos mesmo marcar uma data de vencimento ou acostumar-se. E me veio à lembrança, naquele momento, uma crônica da Marina Colasanti, em que ela escreve: “Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia”.
Quando assisto ao quadro dos desaparecidos no jornal de meio-dia ou relembro os tantos desaparecidos políticos do regime militar, por exemplo, sempre imagino o vazio de sentido que padecem as famílias envolvidas. Nada pode ser mais doloroso do que não saber o paradeiro daqueles que amamos. Vejo meu filho de 6 anos brincar, na sua indefectível inocência, e passo a imaginar como me sentiria na hipótese de seu desaparecimento. Que fim o teria levado? Teria sido raptado e enviado à adoção no estrangeiro? Estaria morto? Por qual motivo?
Tantas possibilidades de destino, misturadas com um pouco de má-fé e falta do que fazer suscitam, por exemplo, a proliferação desses e-mails automáticos – já recebi uns três nas duas últimas semanas – divulgando situações bizarras, como ao dizer que Elisa Samudio foi vista, com os cabelos tingidos de loiro, passeando no shopping. Nem perco tempo lendo essas baboseiras. Na caixa de entrada, deleto-as imediatamente, sem titubear. Mas penso: por não ter tido o corpo enterrado, uma Elisa espectral, fantasmagórica, nos ronda. Pode ser vista na “balada”, no barzinho ou, quem sabe, querendo conquistar algum outro jogador de futebol numa orgia qualquer.
Em Tess, filme de Roman Polanski, a belíssima Nastassja Kinski vive uma jovem que enfrenta os preconceitos da sociedade inglesa do século XIX, ainda muito aferrada a valores ultraconservadores. Três horas de fotografia e direção de arte primorosas se conjugam a uma história de indelével sofrimento. Numa de tantas de suas dores, Tess é seduzida por um primo conquistador e por ele é abandonada. Dessa relação passageira, nasce uma criança que acaba morrendo. E eis que me pego com os olhos marejados diante de uma pungente cena: Tess suplica ao padre que enterre seu bebê com as devidas honras cristãs. Como se trata de um pagão, o padre se recusa a fazê-lo. Replicando ao argumento de que, aos olhos de Deus, não há diferença entre o batismo oficial, feito por um sacerdote e aquele feito por ela própria, Tess insiste no direito ao rito. Visivelmente enlutada, ajoelha-se diante do pároco, que alega, por fim, a possível objeção da comunidade. A partir daí, revoltada contra o padre e sua igreja, Tess parte resoluta: enterrar seu filho morto é conferir-lhe a última dignidade.
Saio da produção cinematográfica franco-inglesa e vou à tragédia grega. O salto é grande. Antígona, juntamente com Ismênia, Etéocles e Polinice são os quatro filhos da relação incestuosa entre Édipo e Jocasta. Eteócles e Polinice morrem em batalha e Creonte – tio das quatro personagens e sucessor do trono, após Édipo vazar os próprios olhos e ter-se refugiado em Colona – decide prestar honras fúnebres a Etéocles. Mas proíbe, sob pena de morte, que se faça o mesmo a Polinice, por considerá-lo um traidor. Indignada com a sentença de que o corpo do irmão seja entregue aos abutres, Antígona rebela-se contra o edito de Creonte. Imiscuída na tarefa de honrar seu irmão morto, enterra-o e lhe presta as devidas homenagens.
Eis o que eu queria dizer: velórios e sepultamentos, ao contrário do que muita gente imagina, não funcionam apenas como um discurso à sociedade – “Fulano morreu” – mas, sobretudo, como uma cerimônia simbólica, feliz ou infelizmente necessária para despedirmo-nos de quem emigra. Mesmo quando se opta por uma cremação, há algum outro símbolo substituto. Guardar as cinzas numa urna. Lançá-las ao mar ou enterrá-las no jardim de casa. De uma forma ou de outra, o rito da despedida permanece.
Tess e Antígona, ainda que clandestinamente, puderam sepultar seus entes queridos. Não pôde, infelizmente, a família da Srta. Samudio. Partes do seu corpo podem – ou não – terem sido devoradas por cães. Pairará sempre o tom indefinido. Seu espectro se pulveriza pelos shoppings, barzinhos etc. Elisa não teve direito às flores, à reza, à pompa do esquife, muito menos às cinzas no mar. E tudo isso é muito “normal”, como diria meu aluno.
É então que retomo a Marina Colasanti: “Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. [...] A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma”.
Dia desses, enquanto discutia o tema da violência com meus alunos de Redação, houve um deles, entre o gaiato e o ponderado, que afirmou serem essas coisas “normais”, visto que “acontecem todos os dias”. Talvez muitos de vocês também pensem assim e chego a conjecturar que necessitamos mesmo marcar uma data de vencimento ou acostumar-se. E me veio à lembrança, naquele momento, uma crônica da Marina Colasanti, em que ela escreve: “Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia”.
Quando assisto ao quadro dos desaparecidos no jornal de meio-dia ou relembro os tantos desaparecidos políticos do regime militar, por exemplo, sempre imagino o vazio de sentido que padecem as famílias envolvidas. Nada pode ser mais doloroso do que não saber o paradeiro daqueles que amamos. Vejo meu filho de 6 anos brincar, na sua indefectível inocência, e passo a imaginar como me sentiria na hipótese de seu desaparecimento. Que fim o teria levado? Teria sido raptado e enviado à adoção no estrangeiro? Estaria morto? Por qual motivo?
Tantas possibilidades de destino, misturadas com um pouco de má-fé e falta do que fazer suscitam, por exemplo, a proliferação desses e-mails automáticos – já recebi uns três nas duas últimas semanas – divulgando situações bizarras, como ao dizer que Elisa Samudio foi vista, com os cabelos tingidos de loiro, passeando no shopping. Nem perco tempo lendo essas baboseiras. Na caixa de entrada, deleto-as imediatamente, sem titubear. Mas penso: por não ter tido o corpo enterrado, uma Elisa espectral, fantasmagórica, nos ronda. Pode ser vista na “balada”, no barzinho ou, quem sabe, querendo conquistar algum outro jogador de futebol numa orgia qualquer.
Em Tess, filme de Roman Polanski, a belíssima Nastassja Kinski vive uma jovem que enfrenta os preconceitos da sociedade inglesa do século XIX, ainda muito aferrada a valores ultraconservadores. Três horas de fotografia e direção de arte primorosas se conjugam a uma história de indelével sofrimento. Numa de tantas de suas dores, Tess é seduzida por um primo conquistador e por ele é abandonada. Dessa relação passageira, nasce uma criança que acaba morrendo. E eis que me pego com os olhos marejados diante de uma pungente cena: Tess suplica ao padre que enterre seu bebê com as devidas honras cristãs. Como se trata de um pagão, o padre se recusa a fazê-lo. Replicando ao argumento de que, aos olhos de Deus, não há diferença entre o batismo oficial, feito por um sacerdote e aquele feito por ela própria, Tess insiste no direito ao rito. Visivelmente enlutada, ajoelha-se diante do pároco, que alega, por fim, a possível objeção da comunidade. A partir daí, revoltada contra o padre e sua igreja, Tess parte resoluta: enterrar seu filho morto é conferir-lhe a última dignidade.
Saio da produção cinematográfica franco-inglesa e vou à tragédia grega. O salto é grande. Antígona, juntamente com Ismênia, Etéocles e Polinice são os quatro filhos da relação incestuosa entre Édipo e Jocasta. Eteócles e Polinice morrem em batalha e Creonte – tio das quatro personagens e sucessor do trono, após Édipo vazar os próprios olhos e ter-se refugiado em Colona – decide prestar honras fúnebres a Etéocles. Mas proíbe, sob pena de morte, que se faça o mesmo a Polinice, por considerá-lo um traidor. Indignada com a sentença de que o corpo do irmão seja entregue aos abutres, Antígona rebela-se contra o edito de Creonte. Imiscuída na tarefa de honrar seu irmão morto, enterra-o e lhe presta as devidas homenagens.
Eis o que eu queria dizer: velórios e sepultamentos, ao contrário do que muita gente imagina, não funcionam apenas como um discurso à sociedade – “Fulano morreu” – mas, sobretudo, como uma cerimônia simbólica, feliz ou infelizmente necessária para despedirmo-nos de quem emigra. Mesmo quando se opta por uma cremação, há algum outro símbolo substituto. Guardar as cinzas numa urna. Lançá-las ao mar ou enterrá-las no jardim de casa. De uma forma ou de outra, o rito da despedida permanece.
Tess e Antígona, ainda que clandestinamente, puderam sepultar seus entes queridos. Não pôde, infelizmente, a família da Srta. Samudio. Partes do seu corpo podem – ou não – terem sido devoradas por cães. Pairará sempre o tom indefinido. Seu espectro se pulveriza pelos shoppings, barzinhos etc. Elisa não teve direito às flores, à reza, à pompa do esquife, muito menos às cinzas no mar. E tudo isso é muito “normal”, como diria meu aluno.
É então que retomo a Marina Colasanti: “Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. [...] A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma”.
* Cria do módulo II da UEFS.
1 comentários:
É assim que sinto quando penso nessas aberrações de sociedade, mas não pude por no papel.
Felizmente, ou não, a Samudio permanece viva entre as pessoas que antes desprezaram sua vida (com comentários como: "mereceu", tão asquerosos)e agora usam sua imagem para a desculpa que os faz não acreditar que o ídolo de outrora é mesmo um antagonista na história. Ou mesmo para afirmar a impossibilidade de tal acontecimento.
É que antes de estar acostumados, o que aprendemos foi a perder mais um pouco: o senso, a humanidade, sensibilidade etc. Agora nos damos a chance da não indignação: perdemos a capacidade de indignar-se - e isso já era dito em forma de apelo por minha professora no final da década de 90...
O apelo para sair do conforto é válido e mais que isso é um grito de desespero dos que ainda enxergam algo além dos espectros de vida modificados e transmitidos a todos os que querem poupar a própria vida. Mas não devia.
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