A cada 40 ou a cada 25 anos no Chile? - Segunda Parte

|por Pablo Fica Piras|

Um “detalhe” da educação superior no Chile sempre difícil de explicar é que, há três décadas, todas as universidades cobram taxas. Existem as que cobram menos pelos seus cursos, uns R$45 mil, pois são tradicionais e são anteriores ao momento da contrarreforma universitária, de 1981. Têm também as outras, onde a transferência dos custos dos cursos universitários a cada um dos seus estudantes flutua entre R$100 e R$150 mil. Isso torna o sistema universitário chileno entre os mais caros do mundo: apenas 15% do financiamento dos cursos universitários vêm do governo, enquanto, por exemplo, na Finlândia é 97% e na Espanha 81%. No Brasil não é muito diferente do Chile: 75% dos matriculados no ensino superior tem para pagar taxas que financiam a instituição, mas 25% dos estudantes universitários estudam com gratuidade, no sistema público.

O custo dos cursos pode originar endividamentos para 15 anos que, com taxas entre 2%, 5,5% ou 8% (solidário, do Estado e de entidades creditícias privadas), podem levar a pagar os mesmos R$45 mil só de juros. Uma situação real ajuda a ilustrar o tema, da íntima relação entre educação e mercado financeiro no Chile. Entre as manifestantes, uma moça de 26 anos, desempregada, que estudou arquitetura na Universidad de las Américas e deve a uma instituição financeira pouco mais de R$37 mil. Pactuou o empréstimo, equivalente ao FIES, em 143 quotas mensais de R$520, para serem pagos até 2021, quando terá 36 anos de idade, além de ter reembolsado o dobro da dívida inicial, pouco mais de R$74 mil. Ela pensa que por estar desempregada não poderá continuar pagando: o nome dela já está no equivalente ao SPC brasileiro. Também o nome do pai, que serviu de avalista para esse empréstimo. Ela tem ainda uma segunda dívida, que contraiu com uma entidade financiadora pública, CORFO, para pagar o primeiro ano do curso, pela que já desembolsou R$4 mil e ainda deve R$10 mil, como no começo.
Como pode o país com maior renda per capita na América do Sul não se responsabilizar integralmente pelo direito fundamental da educação? Como pode não garantir a educação de todos os seus jovens? Pode continuar sendo o país mais desigual, e não somente na educação, de toda a Sulamérica?

Não parece, então, desproporcionado nem injusto avançar ao futuro revisando o passado. E está se fazendo de forma coletiva, participativa, pelo caminho da mobilização social, que o governo critica, talvez por temor, impondo temor. O presidente Piñera disse: “já conhecemos esse caminho no passado e nos levou à quebra da democracia, à perda da sã convivência e a muitas outras conseqüências...”, chegando, no bojo do descaso pela avaliação popular, a rejeitar até mesmo um plebiscito a respeito do tema, porque “destrói a democracia”, segundo o ministro Longueira, de economia. Estas declarações estão originando projeções que tendem a aumentar a violência nos episódios, não a atenuá-los, como seria a responsabilidade de um governante. O prefeito da capital, Zalaquett, cidade que naturalmente acolhe as maiores manifestações e repressões, já ameaçou: “se isto não pára antes do dia 11 (de setembro, aniversário do golpe militar), e acredito que não irá parar, será muito duro... se vemos que há um risco alto, muito simples, pediremos forças especiais; se não alcança, pediremos as forças armadas”.
Outro que vinha sendo escalado para este time de interlocutores de “diálogo fácil” era o próprio ex-ministro da educação, Lavín, candidato derrotado em eleições presidenciais anteriores que, por ser proprietário de uma universidade daquelas privadas, foi finalmente considerado inapto para entender o problema (ou comprometido com a não solução a ele). Antes de sair, sem demonstrar preocupação com isso, divulgou que 110 mil estudantes ou ex-estudantes deviam R$1 bi ao “Fundo Solidário”, ao passo que a superintendência de bancos reconheceu outros R$3,8 bi, originados em 370 mil devedores, provavelmente todos aqueles entre estes.

Iniciado pelas dificuldades intransponíveis que essa visão e prática da educação colocam aos jovens, o debate visa um objetivo maior: a reforma da Constituição de 1980, escrita pela ditadura militar que governou 17 anos o país, aprovada com um plebiscito sem registros eleitorais, sem campanhas de esclarecimentos nem debates, com um voto em que estava desenhada a bandeira do país, pela aprovação, e um quadrado cinza, pela rejeição. Percebe-se que, trinta anos depois, sem uma ditadura agressiva, com todos estes anos sofrendo suas conseqüências, a rejeição é evidente e majoritária.
A evolução do conflito é nitidamente no sentido do fortalecimento da greve, que já se alonga três meses, que se vota semanalmente em cada escola ou universidade, e continua tendo adesão de mais de 70% dos herdeiros próximos dos pingüins, senão eles mesmos, cinco anos depois. Tem sido, e desde o começo, três meses de manifestações multitudinárias, distribuídas em várias cidades além da capital (Valparaíso, Concepción, La Serena, Talca e Copiapó). Às passeatas de estudantes somam-se, ainda timidamente, alguns sindicatos, pois a reforma da constituição deverá ter decorrências favoráveis também aos trabalhadores e ao atendimento das necessidades sociais. A perspectiva é de uma luta unitária que visa benefícios amplos para a classe trabalhadora, não somente localizados em determinado segmento. Na convocatória de 24 e 25 de agosto foram contabilizadas 300 mil pessoas nas ruas de Santiago (a polícia somou somente 175 mil nas manifestações autorizadas). Esses fatos foram considerados “sem sucesso” pelo ministro da casa civil, Chadwick, que ainda informou 140 detidos na capital e 70 nas outras cidades.

Para conhecer esses fatos e a dureza com que a polícia já está reprimindo as manifestações, tem havido algumas filmagens, como a da invasão da emissora de TV comunitária Señal 3, de La Victoria, comunidade originada em uma apropriação de terrenos na década dos anos 60.
Os moradores foram agredidos e, conforme entrevistas, relataram sentir semelhanças entre estas ações da polícia e as análogas da época da ditadura. As pessoas e a emissora também comentam a necessidade de instruir em direitos humanos os policiais, assim como percebem o descaso da imprensa burguesa pela divulgação de fatos como este.

O crescimento do movimento, embora registrado de forma distorcida pela mídia, faz pensar que prossiga um ciclo histórico, de 40 anos aproximadamente, para fatos revolucionários mudando a história do país, ou contribuindo para a percepção da alternativa possível à hegemonia das diferentes épocas, opressiva das maiorias. Apenas para identificar personagens com os períodos de turbulência reivindicativa, podemos lembrar nessas esquinas da história a José Manuel Balmaceda, que nos anos 1890-91 já realizava um governo que findava o monopólio privado do salitre, a maior riqueza nacional na época, e industrializava o país, de forma a ficar independente da Inglaterra no quesito de bens manufaturados. Marmaduke Grove, ativo protagonista político nos anos 1924-32, chegou a estabelecer uma república socialista de 14 dias em 1932 e propor a reforma agrária “nem terras sem homens nem homens sem terra”,  depois de voltar do desterro, quando senador. Salvador Allende, quatro vezes candidato pelas coalizões populares e presidente em 1970-73, propulsor de reformas integradoras e mundialmente reconhecido como o idealizador da primeira tentativa da consecução do socialismo pela via eleitoral.

Em tempo: os que se somam nas ruas às manifestações, na sua imensa maioria, ou eram muito novos ou nem tinham nascido quando a ditadura definhou. Pela natureza e origem do descontentamento mais evidente e na atual inexistência de lideranças reconhecidas para esta primavera de eclosão da luta pela democracia profunda, a dirigente nacional dos estudantes universitários, Camila Vallejo, estudante de geografia, surge como a personificação, inclusive de favorável impacto midiático, desta demanda massiva e crescente. Resta saber até onde os prepostos do globalitarismo estão dispostos a perder os imensos lucros (ou para que tanto lucro) com que o sistema os suborna pelo triste papel de cérberos locais.

Pablo Piras é Chileno e Professor Doutor do DTEC/UEFS

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