|Por Márcio Junqueira|
Foto: Dolores Rodriguez
Numa tarde fria de fins de junho fui encontrar Seu Zito em seu ateliê-marcenaria, que fica a certa altura da Av. João Durval. Nos conhecemos há uns 6 ou 7 anos e sempre destaquei o seu trabalho dentro do panorama que eu chamo de “geração 00 das artes feirense”. A geração que apareceu nesta ultima década e que tem nomes e propostas muito diferentes. Em minhas listinhas particulares penso nos seguintes nomes: Gabriel Ferreira (com pintura-desenho baseado no corpo afro-brasileiro, com especial atenção a capoeira); Leide Velame (com instalações, objetos e performances sempre irreverentes); Denilson Santana, vulgo Coruja (com pinturas, objetos e uma produção teórica das mais loucas); Mytisuyana Matsumo (trabalhando com fotografias raspadas e dança); Karomilla Marco (com objetos e fotos); Quito di Souza (que usa camisetas como suporte para poemas visuais pops), Vitor Venas (com um trabalho multimídia e pedagógico dos mais interessantes); Aline Costa ( sobretudo com pinturas chapadas); Carol Barreto (que, para além do seu trabalho com moda, tem uma produção visual instigante e bem informada, apesar de oculta) e eu mesmo (com meu trabalho lírico).
Em comum a faixa etária que gravita em torno dos 30, certo perfil universitário, o trânsito por diversas linguagens (sempre com apelo pop), o fato de não serem feirenses de nascimento (em sua maioria) e um imaginário predominantemente urbano. Seu Zito é quem mais difere desse perfil. Um dos meus projetos, sempre adiados, era fazer um inventário dessa nova produção, contrapondo esse imaginário à mitologia rural da cidade construída principalmente através da obra de Juraci Dórea. O nome da exposição seria “Quem tem medo de Juraci Dórea?”, e acredito que faria bem tanto aos novíssimos quanto ao trabalho de Juraci, que nunca teve o reconhecimento crítico que lhe é devido.
Seu Zito me recebe cercado de telas, pincéis, tubos de tinta, cola, lixadeira, serras, tupias, toras e lindas peças de madeira que produz há mais de quarenta anos. Enquanto meu olho se perde entre formas retorcidas de madeira e pequenas caixas coloridas, Seu Zito, com voz tranquila e cheio de humor, vai me contando sua historia. Nasceu na pequenina cidade de Heliópolis (SE), onde vivia do biscate de passarinhos, carros de barro, balas de badogue e laranjas (na porta do cinema) . Chegou a Feira de Santana aos 16 anos, a caminho de São Paulo, refazendo o itinerário do seu irmão mais velho. Em sua primeira tarde na cidade viu um serralheiro trabalhando sozinho e se ofereceu para o cargo de ajudante. Naquele mesmo dia fez uma cama, a primeira, a sua. Quatro anos depois abriria a sua marcenaria, a mesma onde me recebe.
O primeiro quadro só veio em 2000, aos 58 anos, por conta do conserto de um guarda-roupa. A peça, muito antiga, apresentava umas das laterais tão estragadas que resolveu lhe aplicar um curativo: uma mulher moldada em massa acrílica e pintada em tons agudos. Antes disso nunca tinha entrado em um museu. Que se lembre, só tinha visto uma exposição, alguma coisa sobre Lampião e Maria Bonita. Mas não chegou a mobilizá-lo. O desejo de pintar era antigo, mas pintura, artes plásticas, a própria palavra arte, lhe parecia algo tão rarefeito. Tão distante dos guarda-roupas, armários e penteadeiras que lhe cercavam no seu dia-dia de marceneiro.
Foto: Dolores Rodriguez
Fora um elogio do escritor Juarez Aires, seu antigo amigo e cliente, as coisas continuariam rarefeitas, não fosse seu encontro com K. Maia. Foi K.Maia que, vendo uma das suas pinturas, descobriu alguma semelhança com o trabalho de Herivelton Figueredo e resolveu apresentá-los. Entrou no circuito. Desde então foi um sem numero de salões regionais, grupos e coletivos. Primeiro o PRÓ-ARC (com coordenação de Herivelton Figueredo e participação de Leide Vellame, Bena Loyola, Denilton e Seu Manuel de Eça) durante um ano e meio. Depois, uma breve passagem pelo GEMA (de Maristela Ribeiro). Finalmente o 4 LINHAS, que fundou aos lado de K.Maia, Ronaldo e Agnaldo. Seu Zito tem pressa.
Começa a pintar por volta de seis e meia da tarde. Finda as obrigações do marceneiro se inaugura o pintor. Pinta geralmente até nove da noite. Antes das dez já está dormindo. Acorda sempre às cinco da manhã. Na ultima quinta-feira do mês (de 3 a 5 da tarde) assiste às sessões da Academia de Letras. Não gosta de musica e lê pouco. Aos domingos frequenta a Igreja Batista Regular, da qual é membro há quarenta anos. Não acredita que exista relação entre sua fé e sua pintura.
Enquanto falamos sobre a precariedade do mercado de arte em Feira de Santana (dominada por quadros feitos para combinar com sofás) e a necessidade de solidariedade entre os artistas, Seu Zito me conduz a uma espécie de museu particular. Uma sala de aproximadamente 5x 3,5 m, com as paredes forradas de pinturas. Soldados, espirais, folhas, conchas, casas, nuvens, manchas, garotos, senhores e uma infinidade de formas inomináveis onde meus olhos se perdem. Tudo em cores quentes. Nos cantos da sala mais telas se acumulam. Futuco algumas, faço perguntas e mais historias vão brotando. Exposições em Viena, Nova York, Roma, Londres e nas Ilhas Canárias. Projetos de oficinas na zona rural, uma exposição em Tobias Barreto, curadorias... Muitos projetos.
Quando deixo o ateliê de Seu Zito uns últimos raios de sol estertoram para os lados do Tomba. A garoa fina intensifica certa nostalgia de fim de tarde. Um poema de Jorge Luis Borges me obseda. Um poema chamado “Os justos”, em que Borges retoma o episodio bíblico (Gênesis, 18) de quando Deus queria destruir Sodoma. Abrão intercede pela cidade dizendo que se houvesse cinquenta justos na cidade eles não poderiam pagar pelos injustos. Deus aceita o trato e admite não destruir a cidade se ali encontrar cinquenta justos. Abrão, depois, fala em quarenta e cinco, depois quarenta, trinta e cinco, trinta, vinte e cinco... até que fica combinado que, se houvesse ali dez homens justos, a cidade seria salva. O poema de Borges é uma inusitada lista dos possíveis salvadores da cidade. A caminho do ônibus vou lembrando os versos: Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire. O que agradece que na terra haja música. O que descobre com prazer uma etimologia. Dois empregados que num café do Sur jogam um silencioso xadrez. O ceramista que premedita uma cor e uma forma. O tipógrafo que compõe bem essa página que talvez não lhe agrade. Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto. O que acaricia um animal adormecido. O que significa ou quer significar um mal que lhe fizeram. O que agradece que na terra haja Stverson. O que prefere que os outros tenham razão. Essas pessoas, que se ignoram, estão salvando o mundo.
1 comentários:
Uma característica bem "sutil" que me me chama atenção na figura de Seu Zito é a sua simplicidade.
Eu o conheci por acaso, ao lado do meu amigo Paulo Rabelo. Tínhamos decidido pegar um ônibus que não era de nossa rotina, o UEFS-João Durval, para descer na avenida referida. Ao passar na frente do ateliê do Seu Zito, caminho para minha casa, nos deparamos com estruturas de madeira para teatro de fantoche. Comecei a olhar os detalhes da peça. "Não pode ser qualquer um que tenha feito isso", pensei.
Fomos entrando e Seu Zito, muito gentil, foi nos convidando. Um bate-papo informal, um cafezinho e íamos nos fascinando com cada tela que encontrávamos.
Esse homem "que cultiva seu jardim", ali escondido, perto da Feira da madeira, é um artista genuíno. E extremamente simples. Sem "poses egóicas" com as quais estamos acostumados nesse mundo da arte. Porque, como diria o Vinicius de Moraes, "O homem que diz 'sou'... Não é!"
Parabéns, Marcio, pelo elegante texto.
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