|por Pablo Fica Piras|
Quando o principal motivo da educação em um país é o lucro auferido pelos donos dos estabelecimentos educacionais e não o desenvolvimento integral e harmonizado da sua população, está se cometendo um crime coletivo, cerceando e discriminando a sua juventude. No Chile, apenas um 15% dos recursos para a educação é proveniente do Estado, o que equivale a 0,3% do PIB, um dos percentuais mais baixos do mundo. Ainda, a metade desse exíguo montante destina-se somente às quatro universidades mais tradicionais, enquanto que as outras ficam mais criticamente dependentes das cobranças aos estudantes (taxas de matrícula, mensalidades) e do financiamento no mercado de capitais.
Se a inadimplência em outros setores da economia já vinha crescendo nos níveis próprios da atual débâcle econômica mundial, não é de se estranhar que o 65% do quintil de menor renda dentre os matriculados nas universidades esteja estruturalmente fazendo parte dos evadidos do ensino superior. Com taxas cobradas em valores entre as seis mais altas do mundo e um sistema de bolsas quase inexistente (somente empréstimos com juros de mercado e carência de dois anos após a formatura), as manifestações dos estudantes no momento no Chile não surpreendem aos seus compatriotas.
Atrás de cada estudante que faz parte das passeatas e protestos está a família, que endossa e estimula, apesar do medo, cautelosamente, porque há muito tempo as finanças do núcleo estão exauridas e comprometidas inclusive no mês que vem, pelo peso com que o ensino superior grava o quotidiano e a intensa financeirização da sociedade.
O diploma profissional é uma condição tradicionalmente almejada pela imensa maioria da população, em que pese que estudar em um curso superior representa um endividamento de em média R$80.000. Paradoxalmente, a maioria desses endividados (56%) nunca irá trabalhar na profissão que estudou: tudo isso ocorre no país de maior renda per capita de América do Sul.
O ensino superior tem ido se deteriorando paulatinamente: todo o sistema cobra matrícula e a seleção por mérito à entrada (ou na permanência) não mais existe, pois o critério do bolso solvente precede. Esta estrutura foi herdada dos dezessete anos de Ditadura, por modificações jurídicas de 1981, e mantida durante os vinte anos de governo da chamada Concertación (leque de amplo espectro de partidos, inicialmente coordenados para se opor à herança da ditadura, que elegeu quatro presidentes seguidos, mas manteve a estrutura de Estado omisso, montada pelo predecessor). Em termos de exclusão e perda de oportunidades infringidas à população, resulta em perdas econômicas e morais maiores do que muitas vezes as atribuídas às desordens que se televisionam, do confronto entre os manifestantes que reivindicam a restauração do sistema público de qualidade e as forças policiais.
Claramente não são manifestações assépticas (e quais as são?), como o demanda a mídia local comprometida com aqueles donos e mantida por eles: no mundo, a imprensa é estruturalmente deficitária, serve mais para espalhar a visão hegemônica do que para realmente noticiar os assuntos importantes para o povo. Isso modula as reações a dita opinião pública local e, às vezes, internacional, à distância. Uma mudança de paradigmas longamente cultivados demanda uma incorporação de conceitos um pouco mais revolucionários do que incrementar cosmética e insignificantemente o que ai está: um número um pouco maior de empréstimos, um prazo de carência de três anos etc..
Porque inclusive é antiga a manha de infiltrar policiais à paisana no meio dos manifestantes, para que o vandalismo seja mais notório e com exemplos isolados altissonantes: isto é o que coincidentemente a mídia veicula, misturando elas com algumas pedradas de autodefesa e martelando os lares dos passivos telespectadores com a estética do medo que é essencial para a manutenção do sistema, visando originar indignação e sensação coletiva de necessidade da represália militar, desproporcionada e antipatriota.
Porque mesmo seguindo o raciocínio oficial, comparemos: no recente protesto de 4 de agosto, só na Universidade do Chile e no Instituto Nacional, centros de referência no país em ensino superior e ensino médio, respectivamente, caíram dentro dos respectivos prédios mais de 370 bombas de gás lacrimogênico (nem tão inócuo assim), permitindo que cada estudante lá dentro, momentaneamente entrincheirado, pudesse levar um cartucho de souvenir, para casa ou dos parentes. O preço oficial de cada uma delas é pouco mais de R$400 (todas as armas são caras, embora às vezes sejam subsidiadas pelo seu fornecedor, de olho nos desdobramentos), o que origina um gasto em repressão de R$150 mil só nesse dia, só nessas bombas nesses dois prédios vizinhos, em Alameda com Prat. Se a própria mídia avaliou o custo do quebra-quebra em R$200 mil, dá para imaginar o quanto está sendo intenso o investimento em repressão do próprio povo. A concentração foi tamanha que a coceira na garganta foi sentida nitidamente até por quem morava a mais de vinte quarteirões do centro.
No entanto, devemos reconhecer que, em uma percepção mais aberta da atualidade, constata-se que somente os sindicatos de professores estão aderindo parcialmente às manifestações: desde a greve de um ano na UNAM do México, sabe-se que não bastam os estudantes para mudar uma sociedade desigual. Mas esta demanda tem fôlego, poderá iniciar um efeito contágio mais profundo e merece ser acompanhada com atenção, pois tem precedentes recentes notórios (a revolução dos pingüins) e, assim como experimenta terremotos a cada vinte e cinco anos, a cada quarenta no Chile vêm eclodindo mudanças maiores.
Pablo é Chileno e Professor Doutor da UEFS (DTEC).
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