|por Franklin Oliveira|
Ele é um autêntico Homem de Lugar Nenhum
sentado em sua terra de lugar nenhum
fazendo todos os seus planos inexistentes
para ninguém.
Nowhere man (Lennon e McCartney)
De noite deu pra tirar um bom sono. A van só passou no hotel tarde e saímos às dez e meia. Mas foi pra fazer um dos melhores programas da nossa estadia em Liverpool. Fomos á casa de Julia Lennon, a duas das casas de Paul (das oito em que ele morou na cidade), e a casa onde George morou entre 1962 e 1965, aliás, a última residência de um beatle na cidade. Ainda sobrou para o Mosspits Lane Primary onde Paul estudou por um semestre em 1945, e a casa de Brian Epstein, que depois foi morar em Londres, onde morreu em 1967.
A primeira parada do dia foi o Aeroporto John Lennon. Puxa, tiramos foi fotos lá, especialmente nos dois monumentos que há lá: o submarino amarelo, que se encontra na porta, e a estátua de John, que está no primeiro andar. Alguém inventou um lanche e de repente lá estava eu comendo um horrível sanduíche inglês salvo pela coca cola.
O próximo lugar que visitamos foi o estádio do Liverpool FC, o famoso time da cidade, por três vezes campeão da Europa. O clássico da cidade é Liverpool X Everton. Fomos á loja onde adquiri um blusão com as cores do segundo uniforme, rubro negro como o Vitória. Pensei comigo mesmo que ia “abafar” no Barradão! Tiramos ainda fotos na porta do estádio. Na ocasião fomos comunicados que ganhamos o direito de visitar o museu. Aí subiu todo mundo para gozar do que não estava no programa. O museu não é lá muito grande e tem poucas salas, mas há muitos documentos, fotos, vídeos e troféus que contam a história do clube mais popular da cidade e que tem apreciadores em todo o mundo.
A próxima parada foi a casa onde Paul viveu dois anos e confesso que nem desci da van por achar que não era uma coisa marcante. Mas logo depois fomos parar no Casbah. Foi a primeira boite onde os Beatles tocaram e enquanto ainda Pete Best fazia a bateria do conjunto. Ficava embaixo da casa da mãe do baterista que montou o estabelecimento contra a vontade do marido e John, Paul e George trabalharam, pintando, colocando tijolos, o escambau pra ficar pronto.
É composto de quatro pequenas salas com portas que levam até o “palco”, um reduzido espaço, que mais tarde foi separado da sala por grades quando uma multidão de jovens começou a frequentar. Ao lado há ainda o bar, mesas, uma escada (onde acredito que o pessoal descia após fazer da casa de Best camarim). Sentamos na própria mesa onde Paul e John costumavam ficar.
O que foi decepcionante foi o “guia” local, que passou falando uns quarenta minutos em inglês sem ao menos se tocar que éramos brasileiros e vários não estavam entendendo nada suas explicações. Aliás, isso não aconteceu poucas vezes na excursão. Esses ingleses se acham mesmo e adotam uma postura imperialista como se quem quiser que procure falar o seu idioma.
Valdir e Vitor salvaram a manhã explicando o que havia sido tratado pelo cara. Pra não sair no prejuízo depois eu e Vitor (vocais), Cabus (bateria) e Antônio Carlos (teclado) demos um show á parte “cantando” no palco do Casbah. Deu pra ver inclusive uma inscrição que John havia gravado no teto do palco.
Desta vez ficaram com pena do nosso estomago e dali fomos diretamente almoçar no Bem Brasil. Foi uma festa. Encontramos um gerente (o Márcio) e alguns funcionários brasileiros, outros falavam português, e pudemos pela primeira vez ter um almoço decente com uma comida que era a cara do Brasil. Rolou churrasco, feijão carioca e mulatinho, “ensopado” (na verdade um strogonoff), com direito até a farofa e caipiroska. Comemos até nos fartar pois o gerente fez um preço camarada.
Fomos então de novo pra loja de Steve e fizemos uma visita ao hotel Hard Days Night. A visita porém foi rápida. É que ficamos tanto tempo na loja (onde gastamos mais libras) que não achamos mais o pessoal do grupo no hotel. Tivemos eu e Cybele que percorrer o hotel por nossa conta mas abordados por funcionários. Só deu pra conhecer o térreo, cheio de referências aos Beatles e cujo restaurante possui um grande painel onde se encontram dezenas de fotos de grandes personalidades que o conjunto admirava, entre as quais nada menos que Karl Marx. No entanto, fomos barrados no subsolo por uma garçonete na porta do pub. Tentei me fazer de desentendido mas ela deixava claro que era particular.
Mas as emoções estavam guardadas para sexta feira, último dia da nossa presença em Liverpool. Acordamos cedo e logo as nove já estávamos na van para ver as casas de John e Paul. Quando chegamos a casa do primeiro ainda não imaginava a emoção que se avizinhava. Afinal, era o imóvel onde meu herói de juventude havia morado entre os cinco e 23 anos de idade com seus tios Mimi e George, para quem sua mãe o deu para criar e seu pai não o queria.
Lennon só se mudou quando vieram dormir fãs na porta da casa. Mimi foi para o sul e houve duas famílias que habitaram a casa antes de Yoko compra-la e doá-la ao The National Trust, como chamam lá a entidade que administra o imóvel. Nossa guia era uma fã, selecionada pela empresa entre inúmeros fãs, para morar na casa e recepcionar as excursões.
O amigo que apresentou John a Paul morava atrás da casa. Foi-nos informado ainda que não existiam várias das casas e construções atuais possibilitando que John pudesse chegar a pé a vários locais da vizinhança, inclusive Strawberry Fields, um abrigo para menores que deu nome a famosa musica do álbum Yellow Submarine.
Depois de tirarmos as fotos regulamentares entramos pelo portão marrom que dava para um pátio. Dalí entramos na cozinha que preserva inúmeros apetrechos e produtos da época. Desembocamos então em um corredor que possuía um local para a guarda de acessórios dos visitantes, duas salas, e uma espécie de vestíbulo fechado que dava pra frente da casa. Uma escada dava pro primeiro andar.
Está tudo em minha mente e creio que nunca esquecerei. As duas salas eram á nossa direita, sendo uma de estar, onde o pessoal se alimentava, e a outra onde assistiam TV, conversavam e onde John foi alfabetizado. A primeira sala foi usada por John e Cintia, quando esta ficou grávida morando ali cerca de um ano. Na segunda sala o Quarry Men, conjunto de John, ensaiava aos domingos á tarde. O vestíbulo foi visitado por todos. Paul gostava de sua acústica (quando se fechava a porta) e foi ali que ele e John escreveram várias músicas.
Dali subimos para o segundo andar. Confesso que subi aos poucos, contando os degraus, sorvendo o momento onde iria entrar no quarto de John. Por isso lembro que a escada tem 14 degraus e dava para um pequeno corredor que conta com dois sanitários (um apenas com a privada e o outro para banho) e três quartos. Um deles era alugado para estudantes quando começou a rarear os recursos de Mimi e George. O segundo era onde os seus tios dormiam. E o terceiro o do próprio John.
Senti como se houvesse uma energia no quarto. Até parecia que o espírito de John ainda andava por ali. Era muito simples e, poderia dizer, pobre. Era atapetado com motivos coloridos, tinha papel de parede e possuía uns 2 a 3 metros quadrados, e uma luminária onde havia apenas uma lâmpada. Havia uma cama pequena encostada na parede que dividia o espaço com um aquecedor, um armário de uma porta, e uma cômoda sobre a qual descansava um antigo rádio.
A janela também tinha cortinas simples com desenhos. Uma régua em T enfeitava o ambiente. O local onde ficava a escada ainda entrava pelo quarto diminuindo em cerca de um metro seu espaço e tinha ao lado um vitral que contava com uma balaustrada onde estavam vasos de flores. Disseram-me depois que os imóveis que estão ali são copias dos originais e que havia um pôster de Brigitte Bardot no teto mas que foi retirado.
Quando saímos da casa o sol surgia. Já havia outro grupo na porta esperando para entrar. Embarcamos na van que tocava a música Nowhere Man (homem de lugar nenhum) e tentava traduzir os versos que não se sabe se estão falando de Deus ou de nós mesmos:
Homem de Lugar Nenhum, por favor escute
você não sabe o que está perdendo!
Homem de Lugar Nenhum, o mundo está sob o seu comando.
Homem de Lugar Nenhum, não se preocupe,
pegue teu tempo, não tenhas pressa!
Deixa tudo até que alguém
Te dê uma ajuda.
Depois fomos andando até Strawberry Fields. Ah como relembrei minha juventude. Sempre preferi a fase final dos Beatles. Toquei tantas vezes o LP (como se dizia na época) Submarino amarelo que deve ter até furado as faixas. Entre outras que gostava estava Strawberry Fields. Quantas interpretações fizemos dela! Uma dizia que se tratava de uma crítica social á situação das crianças que viviam em asilos. O contexto da guerra do Vietnam fez com que se pensasse que a cor vermelha dos morangos (strawberry) se referiria a matança promovida pelo imperialismo na região. E, até a frase final Strawberry fiels forever (Campos de morangos sempre) significariam uma visão pessimista das guerras.
Hoje eu tenho muita dúvida do que John e Paul realmente quiseram dizer. Falei pro pessoal do grupo essas interpretações e eles se surpreenderam. Devem ter tido uma trajetória diferente da minha. Para o guia se tratava apenas de uma canção que remetia á adolescência de John e o impacto causado pelo asilo em sua sensibilidade.
Deixe-me te levar
porque eu estou indo aos Campos de morangos
nada é real
e não há nada com o que se preocupar
Campos de morangos para sempre
Viver é fácil com os olhos fechados
sem entender tudo o que você vê.
Está ficando difícil de ser alguém
Mas tudo funciona bem
E isso não importa pra mim.
Mas, a letra (que deve ter sido elaborada por John com musica de Paul) ao final contradita o refrão, quando afirma que
Sempre não, algumas vezes eu acho que sou eu
mas você sabe que eu sei quando é um sonho.
Às vezes eu penso que um não significa um sim
Mas está tudo errado
por isso eu discordo.
Fomos caminhando pelo passeio da rua e o guia lembrava que foi por ali que a mãe de John morreu atropelada por um policial bêbado justamente quando ela havia se reaproximado do filho. Mas eu estava sob o impacto da casa e do quarto e nem ouvia direito. O portão de entrada do asilo não é longe e fica numa estrada onde precisávamos ter cuidado com os carros.
É claro que o portão não é mais o mesmo, inclusive que se diz que os fãs ficavam tirando pedaço para levar como relíquia. Mas nem quis saber. Para mim é como se fosse, e ainda era vermelho! Abusamos de tirar fotos, individuais e em grupo. Não dava pra ver a casa direito do portão mas tinham colocado uma guitarra poucos metros adentro. Valdir chegou a pular pra tirar fotos lá dentro.
As emoções do último dia, porém, não haviam terminado, e fomos para a casa onde Paul viveu mais tempo em Liverpool. Foi o último lugar que estivemos em Liverpool além do hotel e da estação de trem. Paul mudou pra ela com a mãe enfermeira, o pai e o irmão em 1955 e viveu ali até 1963 escrevendo musicas como She Loves You, I soul her standing there, Love me do, entre outras. A casa não era muito melhor do que a dos tios Mimi e George. Era custodiado pelo Sr. Colin Hall. Desta vez entramos pela frente e encontramos as habituais divisões, o vestíbulo, as salas e a escada que conduzia ao primeiro andar.
A sala era acolhedora, havendo um piano, sofás, lareira e TV. Nela nos foi apresentada pelo rádio uma gravação de Paul para receber os visitantes sob o pano de fundo de uma canção que não identifiquei. Mas apesar de dizer que guardava boas lembranças foi ali que perdeu sua de câncer e seu pai teve que virar pai e mãe para criar os filhos. Ali o pai tocava piano, Paul guitarra e Mike bateria. Mais tarde, quando quebrou o braço, este se dedicou a fotografia. Havia uma porta para a outra sala de jantar (muito pequena) onde os Beatles ensaiaram.
A cozinha e o quintal eram também pequenos e atrás havia um canil da polícia. O guia nos mostrou um cano que Paul e seu irmão usavam para as suas saídas ou chegadas escondidos do pai e que dava pra janela do quarto de Mike. Aí passamos para o primeiro andar onde estavam localizados os quartos. Havia alguns deles mas só dois estavam abertos o maior, que Paul preferiu ceder a Mike pois havia um local em que este poderia usar como câmara escura pra revelar as fotos em troca no entanto de ambos se vestirem aí.
Achei o quarto de Paul ainda menor do que o de John e com o mesmo espaço roubado pela escada. A cama era pequena e um tapete cobria uma parte do chão. Também havia um criado mudo mas o quarto não tinha armário. Havia pequenos espaços para a entrada de ar e uma janela coma dois tipos de cortina.
Depois foi só pegar a van, passar no hotel pra pegar as malas e ir correndo pra estação sem dar tempo pra mais nada, sequer pra almoçar. Quando o trem foi saindo fiquei olhando bem para as paisagens e os prédios tentando gravar na memória recordações daquela bela cidade que frequentou os meus sonhos de adolescente e ainda vive, em sua boa parte, os nostálgicos anos 60.
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