Contra a repressão: a guerra às drogas não é a solução


|por Eduardo Ribeiro|
Parecia que a chuva iria aparecer para levar tudo por água a baixo. No dia 19 de maio, o dia amanheceu cinza, com um vento frio e pingos grossos. Após quatro meses de trabalho, chegara enfim, o dia da Marcha da Maconha de Salvador. E a militância seguiu tímida para a concentração na Praça do Campo Grande, com cartazes e faixas, que poderiam desmanchar em tinta, papel e pano. Mas aos poucos, Seu Pedro deu uma trégua, o sol ensaiou ‘meter as caras’ e o grupo de pessoas de verde começou a crescer no centro da praça. Pontualmente às 16:20, cerca de 300 pessoas começaram a tomar as ruas com apitos, pandeiros e muitas palavras de ordem, em direção ao Farol da Barra.

No ano de 2011, o Supremo Tribunal Federal tomou uma importante decisão. O julgamento da ADPF 187 (Arguição de descumprimento de preceito fundamental) ajuizada pela Procuradoria Geral da República foi considerado histórico. Por decisão unânime, oito votos a favor decidiram pela constitucionalidade da realização das Marchas da Maconha pelo Brasil. Para a corte, os direitos constitucionais de reunião e de livre expressão do pensamento garantem inclusive o debate sobre abolição penal de determinadas condutas puníveis. Para o ministro relator Celso de Mello deveria dar-se ao artigo 287 do Código Penal (fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime), interpretação conforme à Constituição, “de forma a excluir qualquer exegese que possa ensejar a criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica,  inclusive através de manifestações e eventos públicos’’. Baseando-se no artigo, as Marchas da Maconha foram perseguidas por quase duas décadas no país. A partir da decisão do ano passado, se abriu um importante momento histórico para a democracia brasileira e novos marcos para a luta anti-proibicionista.

Neste ano, foram cadastradas no sítio da Marcha da Maconha 37 passeatas em todas as regiões do Brasil. Ao todo, 19 capitais entraram no calendário já conhecido como o Maio Verde. Pode-se arriscar dizer que não menos de 30 mil pessoas foram as ruas de todo o país exigir o debate sobre uma nova política de drogas e a superação radical com o proibicionismo, a violência e o preconceito. Foi registrada apenas uma tentativa de proibição de Marcha, na cidade de Diadema-SP, por parte da prefeitura, mas o judiciário garantiu a atividade.

Mas, por trás do novo ambiente aberto pelas Marchas da Maconha no Brasil, pela decisão do STF e a crescente participação da população na atividade estão importantes disputas a serem travadas para a superação de fato do modelo de proibição para o tema das drogas, baseado na estigmatização, na coerção sócio-racial, no encarceramento em massa e na anti-saúde. E este movimento tem crescido a partir da entrada de novos atores e atrizes nas organizações das marchas, no entendimento de um conjunto cada vez maior de entidades e movimentos sociais da importância de levar esse debate às ruas e na disputa ideológica travada nas mais diversas esferas.

É fundamental perceber que a descriminalização do usuário e da usuária de cannabis, apesar de representar um passo importante na mudança de paradigmas no tema das drogas e de abrir uma oportunidade de superarmos a inútil perseguição ao cultivo da planta, seja para quaisquer de seus fins, sempre será uma política limitada, e sua defesa exclusiva pode desaguar numa defesa de classe, oportuna para a pequena burguesia que hoje vai às ruas também. Basta reparar como a mudança da legislação de drogas no Brasil e no mundo foi sendo alterada para prender cada vez menos filhos e filhas da burguesia e cada vez mais negros e pobres. É esse o exemplo da lei estadunidense que na década de 70, após constatar a prisão constante de jovens de classe média por porte de drogas, altera a lei para agir radicalmente no comércio e assim perseguir negros, imigrantes, pobres. É o mesmo exemplo da última lei de drogas no Brasil que suprime a pena privativa de liberdade para o uso, mas sem definir os critérios para a diferença usuário X traficante, permite que as instituições do judiciário e da polícia, construídos sobre premissas ideológicas racistas, encarcerem e assassinem a juventude negra, e seja complacente com a burguesia.

É fundamental que as Marchas da Maconha no Brasil defendam não só a legalização da cannabis, mas coloquem na pauta do dia a mudança radical da política de drogas em nosso país. Ou iremos às ruas esquecendo que, enquanto a juventude dos bairros nobres quer o seu direito de plantar e não ser incomodada por consumir, a juventude das periferias clama pelo direito básico da vida.

Este ano, fomos às ruas com uma agenda maior para o tema das drogas: “legalização da maconha”, “fim da guerra às drogas”, “combate a internação compulsória de usuários e usuárias”, “aprovação do recurso extraordinário que julgará a constitucionalidade da criminalização do uso de drogas no Brasil”. Potencializamos a capacidade de diálogo da Marcha da Maconha com outros movimentos e retomamos o protagonismo da juventude para os grandes temas na pauta brasileira.

Importante que tenhamos condições de aprofundar o debate no conjunto da sociedade e nas instituições, de forma a criar um novo ambiente propício a grandes mudanças. Os partidos de esquerda, as organizações juvenis, os mandatos parlamentares e governos devem encarar o tema das drogas como central para a superação da violência aguda e cotidiana contra o nosso povo e para a criação de uma ambiente mais saudável na relação das pessoas com as substâncias psicoativas em geral. E a Marcha da Maconha do próximo ano deve entrar na agenda dessas organizações.

E enfim descemos a ladeira da Barra rumo ao Farol. Àquela altura já éramos quase mil, com cartazes, bandeiras, gargantas. O céu voltava a ficar cinza, mas o verde das ruas iluminava nossa marcha. Ao som de nossas vozes, a cidade foi alertada para uma importante reflexão: não é o consumo, mas a ignorância que alimenta o tráfico.

Eduardo Ribeiro é formado em História pela UFBA, membro do Coletivo Marcha da Maconha Salvador e militante da Esquerda Popular e Socialista do Partido dos Trabalhadores. 

1 comentários:

13 de junho de 2012 às 19:44 Dudu JPT disse...

Crédito da foto: Paula Fróes

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