Recordar é viver: lição de 2008 para um amanhã presente

|por Jhonatas Monteiro|
Talvez rememorar 2008 nos ajude no vindouro processo eleitoral de 2012. Para parte da esquerda, através de Marx, é conhecida a sentença de Hegel sobre a repetição na história: uma vez como tragédia, outra como farsa. Não sei se é possível sem alguma grosseria literária chamar de “trágica” a eleição de 2008 em Feira de Santana, mas ainda assim me reservo o direito de usar a palavra “farsa” para descrevê-la. Mais precisamente, que a pequena política dos candidatos de sempre, comprometidos com os costumeiros interesses dominantes, nada de novo trouxe à discussão dos grandes problemas do município. Considerando o sentido da palavra política, foi uma farsa: sem propostas radicalmente diferentes, não existiu conflito entre projetos políticos distintos – no máximo houve disputa de poder entre grupos rivais.

Com a vitória do DEM na eleição municipal de 2008, ainda no 1º turno, não faltou quem dissesse que foi a expressão natural da capacidade de José Ronaldo de Carvalho (2001-2004/2005-2008) de transferir a sua “popularidade” para o seu então representante, Tarcízio Pimenta. Por sua vez, as oposições (PT, PMDB e PSDB) após declararem o seu respeito à “vontade popular” e à “expressão da democracia”, não tardaram em definir seus resultados quantitativos enquanto os melhores da “sua história” e outras afirmações semelhantes que indicavam que também saíram “vitoriosos” do pleito. Mas, se todos são vitoriosos, quem perdeu? A aparente contradição carece de um critério de interpretação. Vários seriam admissíveis, mas recorro aqui ao próprio comportamento das ditas forças de “oposição” durante o processo eleitoral, especialmente por ser esse comportamento uma das próprias motivações do problema.

Contudo, cabe antes uma breve nota de esclarecimento: em determinados momentos históricos, a partir da disputa de posições na institucionalidade do atual Estado capitalista os movimentos populares e partidos socialistas podem colocar em andamento poderosas forças de transformação para melhorar as condições de vida do povo e provocar rupturas mais amplas ao resolver problemas seculares da sociedade. Por sua vez, muitas vezes socialistas apresentam candidaturas, mesmo cientes que não vão “ganhar”, com o objetivo explícito de expressar a oposição a projetos políticos conservadores propostos e mantidos pelos muitos “partidos da ordem”, para usar a célebre expressão de Florestan Fernandes. A oportunidade eleitoral é aproveitada para travar, a partir da ação militante, amplo e radical combate político-ideológico: defesa de medidas de acordo com os interesses dos trabalhadores e trabalhadoras, ou seja, a maioria absoluta da sociedade; proposta de participação popular direta que tensione e, inclusive, mostre os limites das instituições da democracia formal que temos; defesa intransigente de direitos que garantam a vivência das diferenças sem desigualdade; bem como uma intensa mobilização dos símbolos, valores e história dos explorados e oprimidos. É nesse sentido, e somente nesse, que uma derrota eleitoral se torna uma vitória política: um momento, embora não único, de afirmação prática de outra concepção de sociedade.

Evidentemente, nenhuma das candidaturas de “oposição” no último processo eleitoral poderia ser qualificada enquanto “socialista” e que mesmo a denominação “esquerda” em relação ao PT soa forçada quando se tem em vista o tipo de disputa que foi levada a cabo durante as eleições e a prática de governo desse partido nos últimos anos. Porém, seja por pragmatismo ou concordância ideológica, nenhuma dessas candidaturas conseguiu ou, mais precisamente, quis divergir abertamente do grande consenso conservador do debate eleitoral em Feira de Santana: os oito anos de gestão de José Ronaldo. Todas as ditas candidaturas oposicionistas se acovardaram diante dos altamente questionáveis índices de “popularidade” do prefeito à época. Foi como se a disputa se resumisse a saber quem continuaria a obra do “bom administrador” em exercício.

É claro que, em contraste com as gestões desastrosas de José Raimundo de Azevedo (1994-1996) e Clailton Mascarenhas (1997-2000), a normalização administrativa e o programa de obras cosméticas da gestão José Ronaldo causaram grande impacto sobre o imaginário popular e estimularam os apologistas da ordem a propagandear o supostamente inegável “crescimento” e “progresso” do município. Entretanto, o óbvio mais uma vez merece ser lembrado: nenhuma ação administrativa é técnica “pura” de gestão já que obedece a certos interesses e, portanto, segue um determinado sentido político, um projeto político de alguém. Assim, o que possibilitaria uma oposição real a esse projeto político seria um posicionamento radicalmente novo porque revelador dos interesses que efetivamente se beneficiaram do “progresso” da gestão José Ronaldo e radicalmente baseado nos interesses de médio e longo prazo da maioria da população feirense. Coisa não só não desejada por nenhuma dos candidatos da “oposição”, mas impossível pela condição de classe, trajetória política e legenda partidária de cada um deles. Afinal, por exemplo, como é possível criticar em campanha os abusos do empresariado do transporte coletivo se se é financiado por ele? Ou como combater a falta de transparência no uso dos recursos públicos se governo do mesmo modo? Como vou cobrar participação popular nas decisões se não considero o povo enquanto sujeito ativo da política? Como defendo uma política de preservação ambiental se penso sob a mesma lógica o “desenvolvimento”?

O que leva a pensar que projeto é esse conduzido ao longo desses oito anos de consenso conservador: creio que um projeto político profundamente antidemocrático porque reproduziu cotidianamente a negação dos interesses da maioria da população feirense. Não à toa, nesse período que se fortaleceram as atuais relações siamesas entre executivo municipal, especulação imobiliária e cartel do transporte – para ficar apenas nas ilustrações mais evidentes de vínculo com os interesses dominantes locais. Por mais que hoje Tarcízio Pimenta queira negar, sua gestão é herdeira do mesmo autoritarismo avesso à participação popular autônoma, visto no caso do “Plano Diretor” imposto em 2006 ou nos atuais desmandos com as reivindicações do professorado municipal, e também do clientelismo generalizado que lida com o atendimento mínimo de direitos como um grande “favor” concedido ao povo pelo “benevolente” e “trabalhador” governante. Aliás, o expediente (vexatório) de José Ronaldo pedir que a população votasse em Tarcízio Pimenta como “um presente de despedida” foi uma demonstração dessa política que age nas questões públicas como nas relações de compadrio.

Era contra tudo isso que se faria uma oposição real, combatendo aparência e conteúdo do conservadorismo local, mas, longe disso, o espetáculo visto foi outro: Almeri da Silva (PSDB), talvez pelas dificuldades programáticas motivadas por estar um partido burguês na periferia do capitalismo brasileiro, oscilava entre a pregação religiosa moralista e o sentimentalismo trivial; Colbert Filho (PMDB) se limitou às críticas setoriais ao projeto conservador da dupla Ronaldo-Pimenta sem atacar o seu sentido de conjunto; e Sérgio Carneiro (PT) nos apresentou em seu programa eleitoral a dona de casa “Creuza”. Esse último ponto merece destaque, porque é emblemático do processo de adesão petista à ordem e, simultaneamente, por ser expressão da lógica geral das eleições em Feira. Ao contrário de programas eleitorais de anos anteriores do então Partido dos Trabalhadores, Creuza é símbolo da nova visão do PT sobre os “populares”: o pobre não é mais o potencial sujeito das transformações políticas e sociais, apenas aguarda passivamente um “bem feitor” e, no máximo, vota em quem “gosta” – de “Tatá” ela não gostava, mas adorava “Zé” e estaria com ele em 2010! Mais conciliação oportunista impossível!... Creuza foi a representação popularesca do pragmatismo do que, em outros tempos, seria uma candidatura de esquerda. Ao invés de crítica radical ao projeto representado por Tarcízio Pimenta, somente a exploração personalista das suas (muitas) limitações individuais. Convém lembrar, como ficou notório na época, a despolitização não parou por aí: o recurso ao “cabo eleitoral” Lula foi também a moeda corrente nas candidaturas de Colbert Filho e Sérgio Carneiro.

Aliás, tal processo merece ainda dois registros. Em primeiro, a evidente substituição do debate sobre os nós críticos do município, de interesse da maioria da população, pela cantilena “tenho o apoio do presidente Lula” só contribui para mais indistinção entre as candidaturas – o expediente não é novo, basta ter em mente como funcionavam as candidaturas apoiadas por ACM. Em segundo, a centralidade do Bolsa-família no debate eleitoral foi uma expressão sintomática de como as candidaturas do DEM, PMDB e PT estavam sintonizadas no mesmo espectro ideológico: o Bolsa-família foi acriticamente defendido por todos, sem nem a mais rasteira discussão acerca de seu caráter limitado de política compensatória, a ausência de garantias constitucionais desse programa e sua ineficácia na redução estrutural da desigualdade de renda no país. Mais uma vez, ausência de qualquer combate político contra-hegemônico.

Esse cenário embaçado revelou tão somente a disputa entre gestores diferentes para o mesmo projeto político. Todavia, o feitiço se voltou contra os feiticeiros: sem questionar os fundamentos da gestão José Ronaldo as “oposições” legitimaram, e por isso fortaleceram, as formas tradicionais de representação do projeto político conservador, a coligação “Feira vai continuar princesa” capitaneada pelo DEM. Uma vez que não apresentaram nada de novo para Feira de Santana, o consenso conservador se manteve intocado e garantiu o dito “terceiro mandato”. Sem a crítica radical, que polarizasse a percepção da população em torno de um novo projeto histórico para o município, os mesmos interesses continuaram a afirmar que as bijuterias da princesa são pedras preciosas e a esconder seus pés calejados sob o vestido velho emprestado. O conservadorismo continuou a produzir mais do mesmo, só que dessa vez com a ajuda da fiel oposição de sua majestade. Porém, se a história é repetição, também não deixa de ser possibilidade e, se assim o é, em 2012 a farsa muito bem pode se tornar uma comédia.

Jhonatas Monteiro é Professor do Estado da Bahia e Militante do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL)

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