Fazendo um roteiro Marx em Londres

|por Franklin Oliveira|
Não sabia que aquela noite no fim de junho que fomos à Companhia da Pizza em Salvador iria me proporcionar tantas emoções. Quando o locutor, entre uma musica e outra de um conjunto cover dos Beatles (que já não me lembro do nome) anunciou que o Beatles Social Club – BSC faria uma excursão temática em Londres e Liverpool em setembro não tive dúvidas. Procurei na hora Valdir, do grupo de rock Travolta, solicitando a programação, o preço e as datas das reuniões dos viajantes.

O resto foi só convencer minha companheira Cybele. Não foi necessário muito esforço. A excursão era barata (12 dias por 3.600,00 com passagens, hospedagem e passeios incluídos), e já havia tempo que ela não via os sobrinhos Rafa e Matheus, que se encontravam, respectivamente, em Dublin e Londres.

Aí me motivei a voltar às aulas de inglês (desta vez com a excelente professora Elvira), compramos libras e euros e fomos às reuniões do grupo, que começou com uns doze e chegou a quinze em Liverpool. Ainda deu pra convidar Roberto Cabus, velho camarada de batalhas de solidariedade internacional a Cuba nos anos 80.

Foi com este que comecei a discutir, ainda antes da viagem, uma excursão paralela, o “roteiro Marx”. É que, entre as pesquisas para a viagem incluí informações sobre a casa onde viveu Marx e o pub onde dava aulas, o túmulo onde se encontra em Highgate, a casa onde viveu Engels, e o antigo teatro onde foi fundada a I Internacional. Cabus topou logo, outra pessoa da excursão também confirmou o programa (entre vários outros), Vitor não topou e o resto do grupo sequer se pronunciou.

Percebi então que só o roteiro dos Beatles iria ser comum a todos, e cada um teria que fazer a programação que lhe dissesse algo mais. Desta forma, coloquei nove dias a mais após a excursão para que pudéssemos dar conta de nossas necessidades políticas, familiares e turísticas. A riqueza do roteiro do BSC, no entanto previa bastante atividades e tivemos que utilizar os poucos momentos livres e o encerramento da excursão original pra cumprir a nossa programação particular.

Desta forma nosso “roteiro Marx” teve que ser feito em etapas. A primeira foi a visita ao seu túmulo. Pra isso contamos com um problema na excursão. É que o pai de nosso cicerone em Londres baixou ao hospital e os passeios do sábado não puderam ser realizados. Assim, pudemos encontrar com Matheus e Karen nesse dia e combinar para o outro dia a visita a Highgate e outros locais. Mas como tudo que é bom tem que abdicar de alguma coisa, perdemos a visita á feira e ao bairro de Camden Town, deixando de conhecer uma região criativa que deu ao mundo, entre outras, a figura de Amy Winehouse. E o pior é que ainda perdemos Cabus para este programa.

Não podia haver um dia melhor pra visitar Marx que um domingo, uma semana antes do aniversário de dez anos do atentado às torres gêmeas. Como ainda não sabíamos operar com esses irritantes “hotéis” ingleses (estilo faça tudo você mesmo) tivemos que acordar as nove horas da madrugada, tomar nosso breakfast num café da esquina, e voltar pra encontrar Matheus e Karen pouco depois das dez na porta do Hyde Park Hotels em Bayswater.

Desculpem o parêntesis, mas não posso deixar de contar o que passamos em matéria de hospedagem em Londres e Liverpool. No resto até que ficamos em hotéis mesmo, mas nessas cidades a hospedagem tinha um conceito muito moderno para o nosso gosto. Não foi tanto pelo “apertamento” pequeno e pior que um kitchenette baiano, mas pelo fato dos que imaginaram esse sistema ter o desplante de colocar no mesmo quarto a cama, o armário, a cozinha (com fogão, gás e tudo) e a TV. Só deixaram o banheiro separado.
De forma que quando estirávamos o pé pra fora da cama quase batíamos no extintor, e tínhamos que ter cuidado ao acordar pra não chutar o fogão. Era tanto botão pra apertar que fomos embora e não descobrimos como fazer café no quarto, embora o restante do grupo não combinasse com a nossa ignorância. Mas vamos voltar a Marx, quero dizer ao passeio com nossos sobrinhos.

A nossa opção foi deixar o cemitério por último, por necessitar pegar o metrô. Desta forma fomos, em primeiro lugar, ao Hyde Park a uma quadra de onde estávamos. Ali pudemos gozar de breves instantes de tranquilidade numa Londres que vive apressada (caminhando não se sabe pra onde) junto as margens de seu lago apreciando cisnes, barquinhos e o Cooper dos residentes em uma capital que conta, pelo menos, com 40% de imigrantes.

Ainda a pé fomos a Nothing Hill em uns dez minutos de caminhada. Eu já conhecia o bairro do filme Um lugar em Nothing Hill e confesso que o visitei esperando a qualquer momento ver Julia Roberts e Hugh Grant saindo de alguma de suas belíssimas e coloridas casas. Mas desci logo dos sonhos do cinema com a informação de Matheus sobre os preços das casas e aluguéis no bairro, estando explicado porque a livraria do personagem Will (Hugh Grant) faliu.

Mesmo com uma casa beirando as 700 mil e aluguéis a 1.500 libras mensais o comércio local é pequeno e de fazer inveja. São casas com fachada de madeira onde se pode encontrar de tudo, desde produtos tradicionais a antiguidades, pubs e mercadorias dignas de colecionadores. Mas ali nos limitamos a tomar um sorvete italiano e visitar um legítimo pub irlandês onde encontramos inclusive a foto de um show dos Beatles em 1966. Pensamos em almoçar por ali, mas preferimos fazer isso em Highgate pra ganhar tempo.

O lugar é longe à beça, fica no Condado de Isligton, e tivemos que pegar alguns trens trocando de plataforma no metrô. Descemos na estação de Artway e aproveitamos pra almoçar num excelente restaurante persa das proximidades. Nessa hora a presença dos sobrinhos foi essencial, pois um cardápio em inglês e nomes de comidas turcas ninguém merece! Foi assim que conseguimos pedir e desfrutar de alguns dos bons pratos da culinária asiática.

Depois do almoço enfrentamos uma longa ladeira até a colina de Highgate. Na ocasião ainda pensava que Marx havia sido trazido para ali desde o Soho, e me intrigava, pois o bairro era ainda mais longe de Nothing Hill. Para encontrar o túmulo do herói da minha juventude tivemos que caminhar até o Waterlow Park (não confundir com Waterloo), cuja entrada é à direita, perto da Igreja de Saint Joseph.

Tem que atravessar o parque pra encontrar o cemitério onde Marx está. Mas lhe asseguro que se trata de um passeio muito agradável. O lugar é lindo, aliás, sem querer parecer lúgubre, é onde qualquer um escolheria pra ser enterrado. Como Matheus já sabia o caminho foi só caminhar meio quilômetro para sair no caminho dos cemitérios. Reparem que falo no plural. É que atualmente existem dois cemitérios em Highgate embora na época em que Marx morreu era um só com alas diferentes, sendo nosso revolucionário enterrado na dos banidos pela Igreja Anglicana.

O cemitério onde Marx está fica à esquerda do caminho e nem tem um portal de entrada como o outro, limitando-se a um portão e uma portaria, onde se paga a visita e se pode comprar alguns folhetos. Mas atenção é preciso que se saiba que há dois túmulos de Marx, aquele onde ele foi enterrado e o novo, criado nos anos 50. Sabendo do fato pedi a meu sobrinho para perguntar ao responsável pela portaria mas ele disse não saber onde ficava o primeiro túmulo, seja por ignorância ou por não gostar da hora em que chegamos.

Sendo comunicados que o cemitério fechava às cinco e não às seis como pensávamos, descemos com a expectativa (como bons brasileiros) de ultrapassar o horário permitido. O cemitério é belo e, pelo menos os túmulos que se encontram nas suas ruas estão bem conservados. Ali estão comunistas de alguns países que escolheram compartilhar o local de sua última morada com o revolucionário.

Não foi preciso caminhar muito. Bastou descer o caminho ao lado da portaria e andar mais um pouco até uma esquina. É um misto de monumento e túmulo constituindo-se de uma pequenina base de pedra sobre a qual se ergue um bloco de granito que serve como lápide, e, em cima deste, uma grande cabeça de Marx. É de autoria do escultor Laurence Bradshaw. Na frente do bloco está uma versão da famosa frase Trabalhadores de todo o mundo uni-vos. Em baixo da lápide encontra-se uma das afirmações das suas Teses sobre Feuerbach: Os filósofos apenas interpretaram o mundo em vários sentidos, a questão é transformá-lo. Estão ali, além de Marx, sua esposa Jenny, sua filha Eleanor, o neto Harry Longuet, e a governanta da família Helena Demuth (com quem Marx teve um caso).

Confesso que, mesmo depois de todo esse tempo de batalha, fui tomado por uma emoção muito grande por estar ali onde inclusive Engels havia pronunciado uma oração fúnebre.  Depois de observá-lo, andar em volta dele e tirar várias fotos, minha sobrinha Karen filmou minha presença ao lado do túmulo. Até que chamei Cybele pra sair na foto ao meu lado mas ela não aceitou. Pode ter sido por não gostar de visitar cemitérios, por querer que eu desfrutasse sozinho aquele momento, ou por não querer aparecer em “fotos comprometedoras”. Na ocasião Karen pediu que eu dissesse como me sentia mas fiz um papelão. Só consegui balbuciar algumas palavras, tipo “é difícil falar”, lembrar de minha saudosa mãe (talvez porque Marx fosse meu pai na política)e chorar.

Depois foi a febril procura do túmulo verdadeiro. Tinha algumas indicações para isso. Estaria a uns duzentos metros atrás do atual, e seria uma lápide rasa e quebrada. Meus acompanhantes puseram em dúvida as minhas informações. Matheus disse que nunca tinha ouvido falar do assunto mas me ajudou a procurar.

Descemos a ladeira numa caça inútil verificando os túmulos que tinham essas características que estavam no caminho até uns quinhentos metros. Entrei pela floresta adentro em numerosos caminhos onde existem centenas de túmulos rasos. E foi quando estávamos nesta busca é que chegou uma senhora que trabalha no cemitério avisando que havia se esgotado a hora da visita.

Não sei se foi a raiva mas achamos a mulher com uma cara mal assombrada. Parecia um fantasma. Mas pelo menos confirmou pro pessoal a existência do túmulo embora sem apontar onde se localizava.  Agora era a vez da subida mas continuei olhando pros lados do caminho, e digo a vocês, se encontrasse o túmulo não haveriam guardas suficientes pra me tirar de Highgate. Mas isso não seria necessário pois chegamos à portaria sem encontra-lo e as 17:02. Ah como são miseráveis esses britânicos em matéria de horário!

Após esta emocionante experiência atravessamos o Waterlow Park de novo e precisei sentar duas vezes. Não estava cansado mas digerindo a emoção deste inesquecível dia 4 de setembro de 2011 quando reencontrei meu herói da juventude. E foi ainda aéreo que visitei a Igreja Saint Joseph, descemos a ladeira pelo outro lado, tiramos fotos na Karl Marx casa de chá e pegamos o metrô em direção ao Soho onde fomos assistir a Orquestra do Clube de Jazz de Rowney Scott.

Meu “roteiro Marx” não poderia ter começado melhor. Depois dali cumpriríamos mil programas, iríamos a Liverpool, visitaríamos as casas onde viveram os Beatles, mas só sentiria emoção ao entrar no quarto da casa da Tia Mimi onde outro herói da minha juventude, John Lennon, viveu sua adolescência e juventude. Em Edimburgo chegamos bem perto do túmulo de Adam Smith mas não havia tempo na excursão pra procura-lo no cemitério da igreja onde se encontra.

O restante do “roteiro Marx” só seria cumprido oito dias depois, e novamente sem Cabus que já havia partido. Aproveitando as férias da sobrinha Karen, percorrermos as ruas do bairro vibrante de Soho, onde encontramos o apartamento onde viveu Marx, entre 1851 e 1856, o pub onde o revolucionário deu aulas, e o prédio onde foi fundada a I Internacional. Não nos deixaram subir pra ver onde Marx morou. Consolei-me pensando que nada devia estar como antes no clube privado que ali funciona num prédio que tem no térreo o Restaurante Marx (sic!) e agregados.

O antigo pub Red Lion também está no Soho, e ainda é um pub, só que tem hoje outro nome. Entrei e dei uma boa olhada para o ambiente lotado percebendo que os seus fins atuais são, digamos, menos nobres. Já o antigo St Martins Hall agora é o Queens Theather, um dos principais teatros da cidade, e encenava por coincidência o musical Les Miserables estando na fachada uma figura portando colossal bandeira vermelha.

Meu “roteiro Marx” em Londres havia terminado, não dando tempo pra ir na casa onde Engels viveu em Primrose Hill que sequer havia descoberto o número. Fica para outra oportunidade.

Franklin Oliveira Jr. é escritor, professor universitário, e criador do blog memoriasdafontenova.

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