Fox Terrier

Texto Ed Samper
Arte Don Guto
Um homem franzino e pálido atravessa o canto da rua apressadamente. Ele escolhe dentre os prédios ao seu redor um que o condenará. Ele entra sorrateiramente, verifica se há alguém na portaria e, como todos parecem desavisados, invade rapidamente o elevador lotado. Inclina a cabeça para o lado e para baixo e toca o nono. Não encara o pânico ao seu redor e desce quase em transe. Percebe que os corredores são escuros apesar do dia ser claro, modorrento e tórrido. Percebe a umidade com as narinas, escurece também e por enquanto só observa. Quinze minutos a menos, verifica se o 901 tem campainha, espera o medo tecer os últimos fios e estabelece o contato. Um garoto de olhos violeta e sorriso vigoroso o atende e esconde as palavras. O assustado raquítico se debruça na porta e pede ajuda. O garoto adentra o gigantesco apartamento sem cortinas cuja claridade esfaqueia a penumbra do corredor. A sala parece oval e sem teto, o chão lembra um pântano de fibra sintética, as paredes estão enlameadas de papel. No fundo, ouvem-se os odores da cozinha e pode-se ver a melodia da conversa. O garoto retorna e sai do imóvel com sua boca inerte e suas vontades arreadas. O homem gela e não o segue. Espera vir a outra voz que abafa o barulho dos raios de sol ultrapassando a vidraça da janela. O garoto retorna algum tempo depois, observa que a visita definha em sua porta descalça e traz em suas mãos uma carcaça conhecida. Tenta desvelar os sentimentos daqueles olhos esbugalhados que sua e saliva como se houvesse furos em sua escama. A voz começa a gritar no fundo, os tons daquele momento tornam-se azuis, apesar do sol forte e do menino esbranquiçado ao lado do elevador.

Um homem franzino esticou-se como pode para alcançar o nono andar de um edifício que fazia sombra numa avenida pouco movimentada de um feriado criado para ocultar a mais-valia que persiste naquela idade-média comprimida num i-phone. Um garoto sem medo aguarda que o elevador se abra e finge não reconhecer o resto de carne nas mãos daquele insignificante que sabe ler os seus dedos que escreve com as unhas e vomita na entrada do pântano. Uma voz delicada e ríspida corteja o tempo com ofensas que ficarão restritas às paredes e aos ecos que os corredores transmitem para os vizinhos indiferentes.

Um homem recomendado por sua mãe que galgou a cozinha de um luxuoso edifício em um bairro para poucos de uma cidade calorenta e com 10% de vivos, levava cães para o sanitário público que era a praça ali perto. Ele sabia que os animais eram valiosos e cultivavam o ócio como produto principal de seu valor. Porém um caminhão de lavanderia ultrapassou o sinal aberto, deglutindo os distantes parentes de lobos.

Era uma rotina diária: dois ônibus antes das sete, elevador de serviço, tomar os cães, ouvir piadinhas, os mesmos dois ônibus no final da tarde após alimentar os cães e banhar os mesmos, se alimentar, limpar as fezes dos gatos, sair com os cães ao anoitecer. Tinha alguns filhos para alimentar, duas mulheres em bairros diferentes; vícios para alimentar: o jogo e os bares. Amigos para alimentar: dava dicas para assaltos nos prédios da região. Tinha uma final para ganhar no fim-de-semana. Tinha uma obra para terminar em cima da laje da mãe. Achava que não ganhava o necessário e que não tinha escolha. Então escolheu o fim dos cães a partir do momento em que o garoto com olhos violetas passou a confundi-lo com um símio. Arrependeu-se e ficou pálido, pegou o resto de um deles e atravessou a rua em direção a um dos edifícios num canto qualquer daquela cidade. Subiu sem querer pelo elevador social só com metade do cão e metade dos sentidos e pôs-se a tocar a campainha. Descobriu os olhos violetas do menino que era motivado a confundir pessoas e ainda teve que ouvir uma voz lamurienta  - de tez sensível e de interesses dispersos entre o shopping e a próxima viagem - decidir seu futuro.

Um homem franzino e pálido por falta de sangue nas têmporas definha na porta de um menino de olhos violeta, suas pupilas estão dilatadas, sua respiração não alcança o pulmão como devido, sua história continua sendo reescrita como a dos que perderam o horário do ônibus para ir a uma final de um campeonato de futebol.

Ed Samper é bacharel em letras pela UFBA e (quase) mestre em cultura e sociedade pela mesma instituição.
Don Guto faz parte do Conselho Editorial da Transa Revista.

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