Os “vilões baianos”: a Copa América de 1989

|por Franklin Oliveira|
Não é nenhuma novidade acusações a baianos na história, o que é raro é a sua generalização. Os povos originários e seus descendentes daqui foram repetidas vezes chamados de “selvagens”, mesmo quando só faziam defender a sua terra. Quanto aos xingamentos das revoltas do povo baiano contra os portugueses e o Império nem é bom falar pois vão de traidores, a arrivistas, malfeitores a outros menos votados.

As acusações continuam durante aquilo que se prefere chamar de “república”, voltando-se contra sindicalistas, pacifistas, comunistas, ou simplesmente a aqueles que fizeram oposição aos regimes instalados em 1889, 1930, 1964 ou ao neoliberalismo. Mas uma das maiores diatribes recentemente assacadas contra todos os baianos veio mesmo do futebol, e ocorreu durante a fase preliminar da Copa América de 1989, as quais rememoramos por ocasião de sua nova edição.

1989 foi um dos anos mais importantes da história mundial recente em vários campos. George Bush pai assumia a presidência dos Estados Unidos da América, e, poucos dias depois se iniciava o recuo estratégico da URSS, que levaria, logo de saída, a retirada das suas tropas do Afeganistão. No esporte Alain Prost vencia o seu terceiro título mundial na Fórmula Um e Emerson Fittipaldi se tornava o primeiro brasileiro ao vencer as Quinhentas milhas de Indianópolis e a Fórmula Indy.

Em março morre a atriz Dina Sfat, em junho a musa da bossa nova Nara Leão, e em agosto desaparecem de uma vez só Luiz Gonzaga, o rei do baião, e o baiano Raul Seixas, ícone do rock brasileiro. Steven Spielberg dirigia a série Indiana Jones, o diretor e ator inglês Kenneth Branagh o clássico Henrique V, enquanto Cacá Diegues lançava Dias melhores virão, refletindo a expectativa reinante no Brasil.

Na ocasião havia uma frustração evidente com o governante que havia sucedido o regime, José Sarney, que havia chegado ao cargo em função da morte de Tancredo Neves, já escolhido para o cargo não através das Diretas Já mas pelo nauseabundo Colégio Eleitoral. Seu currículo no poder incluía o estelionato eleitoral do patrocínio de um plano econômico que foi suprimido logo nos dias seguintes á eleição de 1986.

Esse fator pesou na deflagração da campanha Basta de Sarney que, além de conseguir a limitação do seu mandato em quatro anos, ajudou a marcação das eleições para presidente depois de quase trinta anos. Naquele ano teríamos um recorde de candidatos na campanha representando, praticamente, todas as correntes de opinião que visavam capitalizar os anseios da população que esperava se livrar de Sarney e ter dias melhores para o país.

Mas não foi somente as eleições presidenciais que ressurgiram das cinzas de 1960. Naquele ano os baianos haviam conseguido, de forma inédita, seu primeiro título nacional de clubes com o EC Bahia, que venceu a I Taça Brasil em pleno Maracanã derrotando o poderoso Santos. E, exatamente em 1989, o clube voltava à cabeça do futebol nacional, obtendo outra conquista memorável, a do campeonato brasileiro do ano anterior, após partidas contra o Fluminense e o Internacional, que chegaram a bater o recorde de pagantes na Fonte Nova.

O ano começou de forma trágica, com a ocorrência de uma tragédia de grande repercussão na madrugada do seu primeiro dia, o afundamento do barco Bateau Mouche nas águas da Guanabara.  Logo depois do carnaval, enquanto os baianos ainda comemoravam o título, a banda A-Ha visita o Brasil mas só faz shows no eixo Rio-São Paulo. Mas isto não fere a autoestima baiana que contava, após muito tempo, com jogadores na seleção brasileira que se prepara para a disputa da Copa América.

O contencioso da CBD, e de sua sucessora CBF, sempre havia sido hostil com o que antigamente se chamava de “Norte” do país. Basta de dizer que desde que a seleção “nacional” foi formada levou dez anos para um jogador de fora do “Sul” ser convocado (Mica do Botafogo baiano em 1923) e vinte para que jogasse fora dali. Só a conquista do Campeonato Brasileiro de Seleções pelos baianos em 1934, e, diga-se de passagem, o interesse de grana para suprir as despesas da confederação no passeio que foi a Copa do Mundo de 1934 na Europa, é que traria a seleção brasileira á Bahia e Pernambuco.

Se formos verificar os quase cem anos desta seleção podemos contar nos dedos os jogadores nordestinos, em atividade em seus estados, que foram convocados. Mas a elevação do Bahia ao posto máximo do futebol nacional coincidia naquele ano com os preparativos para a Copa do Mundo de 1990 na Itália. Na ocasião, a malfadada CBF havia conseguido da Confederação Sul-Americana de Futebol, trazer a Copa América para o Brasil após 40 anos, usando como justificativa a comemoração do seu 75º aniversário. O cálculo político não teve ausente da reivindicação. É que o Brasil, desde os anos 70, amargava um dos seus maiores períodos de abstinência de títulos, e não esperava coisa melhor no ano seguinte de uma copa que seria disputada mais uma vez na Europa.

Após a fracassada Mini - copa de 1972, a Copa América vinha a calhar para juntar interesses políticos e esportivos dos governantes. Mas paulistas, mineiros e gaúchos não brigaram para sediar certame, que parecia fadado ao insucesso financeiro, e, além disto Sarney não estava muito interessado que isto acontecesse, pois eram dirigidos por fortes concorrentes do presidente na Aliança Democrática com os governadores Orestes Quércia, Pedro Simon e Newton Cardoso.

O jeito foi contemplar estados com peso político menor e muito interesse do público por futebol (Bahia e Goiais, governados pelos pemedebistas Waldir Pires e Henrique Santillo) e reservar o “filé mignon” da fase final para o Rio de Janeiro governado pelo aliado Wellington Moreira Franco. A Bahia sediaria o Grupo A, onde atuaria o Brasil, face os recordes de renda da Fonte Nova, ficando Goiais com a Argentina e outros menos votados.

Os dirigentes combinaram tudo muito bem mas só esqueceram de dizer ao técnico Sebastião Lazaroni. A seleção brasileira não era nenhuma novidade para os baianos, tendo jogado quatro vezes na boa terra, só na última década, 1979, 1981, 1983 e 1985. A terceira ficou famosa em função da seleção brasileira ter decidido a vaga na Fonte Nova com o Uruguai, depois de haver perdido em Montevideu por dois a zero. Na ocasião a seleção perdeu o título e não me lembro de nenhuma reclamação da recém-criada CBF do comportamento baiano.

Os dias anteriores á realização do torneio de 1989 foram tensos em Salvador. A seleção brasileira havia preterido o baiano Charles, da equipe campeã nacional, por jogadores de clubes que nem sequer chegaram ás finais do certame mas que atendiam ao “critério” de jogarem nos grandes clubes do eixo Rio-São Paulo. O episódio calou fundo junto á torcida baiana que, para os dirigentes do futebol brasileiro, deveria apenas carrear dinheiro para os cofres da CBF, não devendo seus atletas terem pretensões de jogar na seleção do país. Na ocasião, radialistas como Raimundo Varela, França Teixeira, e outros, ocuparam os microfones para combater mais esta prática discriminatória contra os clubes baianos.

Mas o que muitos confrades do Sul não dizem é que Lazaroni não ficou satisfeito em retirar o baiano Charles da seleção, usou a Bahia para testar a equipe para a fase final da Copa América. A seleção estreou no certame em primeiro de julho, quando os baianos estavam ocupados com a data magna da independência do Brasil na Bahia, contra a Venezuela. Talvez isso, e o fraco adversário, tenha colaborado para o reduzido público presente, pouco mais de dez mil pessoas.

Ao contrário de outros momentos onde a CBF usou e abusou da prática de escalar paulistas, mineiros e gaúchos, quando a seleção jogou em seus estados, o técnico ignorou solenemente os baianos. Possuindo Aldair, nascido em de Ilhéus, para a posição preferiu colocar Mazinho na lateral direita, e permitiu a Bebeto, mesmo fazendo um gol logo aos dois minutos, jogar apenas no primeiro tempo.

André Cruz atuou como centro médio num jogo que teve um meio de campo formado por Giovani, Mario Galvão, Tite e Valdo. A seleção brasileira ganhou de três a um e seu futebol foi ainda pior no segundo tempo. Portanto, as vaias que o time já tomava na Fonte Nova não se devem somente a Charles ter sido cortado mas á sua ruindade que despertava em todos a preocupação com o que iria acontecer na Copa do Mundo do ano seguinte.

Renato Gaúcho procedeu na ocasião como as elites que montaram o Estado Nacional ás custas dos interesses republicanos baianos, acusando-nos de sermos uma “terra de índios”, talvez em função da justa ovada que recebeu. Eu tenho muito orgulho de ser antepassados dos povos originários do território que habito. Aliás, as classes dominantes do nosso país não reclamaram disto quando buscaram se aliar com os caboclos baianos desde a conquista, a colonização, e até nos conflitos da independência.

Mesmo com todas as provocações de Lazaroni, Renato Gaúcho e Cia, os torcedores baianos triplicaram sua presença no jogo contra o Peru. Na ocasião, Lazaroni recuou, o que mostra que admitiu no privado as críticas, mudando a defesa e colocando Dunga no meio do campo. Pra “agradar” os baianos colocou Aldair, nascido em Ilhéus, na lateral direita e deixou Bebeto jogar todo o tempo. Aliás, isso colaborou para que este tivesse a chance de assumir a titularidade da seleção, embora não reconheça isso até hoje.

Mas a seleção brasileira mais uma vez não correspondeu empatando sem gols contra os fracos peruanos. A vaia agora corria solta com apenas uma diferença, a crítica que os baianos tinham vanguardeado “por bairrismo” passou a se espalhar pelo território nacional, com muitos jornalistas do “Sul” ficando á reboque dos baianos.

Apesar de toda a acusação de boicote á “nossa” seleção os baianos não arredaram pé do estádio, levando mais de trinta mil pessoas á Fonte Nova no jogo seguinte contra a Colômbia. Lazaroni promoveu novas modificações. Insistiu com Alemão e Giovani no meio de campo e chegou ao ponto de inventar a dupla de ataque Renato Gaúcho e Baltazar retirando Bebeto e Romário. Mais uma vez a torcida reclamou das bobagens do técnico que se refletiram no medíocre resultado, novo empate sem gols.

Pra esconder as justas críticas á seleção e não dar o braço a torcer a CBF fez uma séria desfeita á toda a Bahia retirando os últimos jogos do estado e os transferindo para Pernambuco, cujas elites são arquirrivais históricas das elites baianas. Foi ali que, longe das críticas baianas, Lazaroni escalaria a equipe que seria campeã do torneio mantendo-a nos quatro jogos seguintes, formada pela dupla Mazinho e Dunga como volantes, Silas e Valdo como meias, e retornaria a dupla Bebeto e Romário no ataque.

As críticas dos “bairristas” baianos tinham ajudado a montar a seleção campeã. Mas os dirigentes do futebol brasileiro nunca fariam autocrítica de seus erros, preferindo deixar até hoje os baianos como “vilões” de 1989. Talvez por isso o fracasso de Lazaroni na Copa de 1990 na Itália fosse tão retumbante.

Franklin Oliveira Jr. Desportistas, escritor e criador do blog memoriasdafontenova.

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