Vidazul

Texto Ed Samper*
Arte Don Guto*


As portas permaneciam dormindo em pé, trancadas que estavam, num quarto vazio sem janelas, nem vistas para o jardim. O céu era bege e o sol tinha os filamentos queimados. O velho e desbotado piso de madeira, disposto em retângulos, fervilhava em trilhos de pó; estáticas criaturas permaneciam em paz. As paredes apresentavam-se azuladas como se aquela cor fizesse parte de alguma lembrança; não vista pelos olhos, as partes íntimas de alguma natureza sadia pairavam naquele úmido recanto.

O som da demolição impunha-se através do lamento das marretas. Em poucos instantes, a enxurrada de sais dos operários em ação se expeliria para um rio imaginário. Britadeiras exigiam seu espaço na audição alheia, enternecendo o rijo e impassível concreto: de todas as partes daquele nicho geavam pedregulhos e a poeira esgotava as respirações sem camuflagens.

Depois de horas e surtos de dores, o palco merecia cerrar suas cortinas: contentes com o badalar do almoço, três homens, travestidos com a palidez da cal, desmembravam suas marmitas de panos de prato, trazendo na face uma imagem:  o enfadonho desprender de calorias prosseguiria até a extinção do dia.

Algumas vidas findariam naquela construção no momento em que o alimento frio e sem intenção de nutrir resultasse no último bolo alimentar, esquentando e umedecendo aquelas peles esfoladas e desabitadas – eram criadores sem controle de suas obras.

Naquele começo de tarde, numa cidade coberta de afazeres, sirenes vazadas e caules de vidro, o sono logo acometeria aqueles que não imaginariam ver um cordeiro exterminado no silêncio do pó em meio aos uivos da ideologia das máquinas. Rabiscaram em seus sentidos um bom local que breve deixaria a condição de suspenso; bastaria entrar para se proteger dos raios da lamparina de hidrogênio - somente por alguns instantes para que somasse um diminuto descanso. A marreta lamentava substituir a chave e ao desconfiarem que ali restariam, adentraram.

Foi-se então um olhar faltante para a luz que desenhava dois vultos; um passo para trás e a queda no derradeiro e sujo leito. Ainda com um punhado de vida nos olhos, reparou que os dois íngremes corpos aproximaram-se lépidos, daí nada mais viu, nem respirou... Um deles ainda alcançou o forno que assava aquele minuto do século derrubando a porta enquanto balbuciava gritos ritmados, frenéticos e cambaleantes: era a queda do poema final no meio de um dia.

Naquelas paredes de fortes tons azulados, enfim compuseram uma cantiga de desconstrução. Olhos com contornos melancólicos contemplavam o ambiente onde havia tempos não era permitida uma boa acolhida. Uma fagulha de sede penetrou em seus lábios mascarados e tiveram de ir banhá-los; eram organismos de muita resistência.

* Ed Samper é bacharel em letras pela UFBA e (quase) mestre em cultura e sociedade pela mesma instituição.
** Don Guto faz parte do Conselho Editorial da Transa Revista.

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