Homem Doente

Texto Ed Samper*
Arte Don Guto**
Retirou a música do cadafalso, enforcando-a no console; por uma fresta, podia-se notar o tempo desnutrir-se e harmonizar-se à neblina vertida pelas caixas acústicas. Morosas hélices atrasavam o abafamento, embalando o bailar das partículas num frágil corredor de luz construído entre duas telhas. Na parede cor de gelo, um cortejo de bichos atarantados transportava um gigante alado qualquer para a primeira refeição do dia. O gás extinguiu-se; a lentilha ficou no meio do cozimento.

Frutas descansavam no fundo do cesto; as faces voltadas para a claridade apodreciam. Contrato encerrado, seria muito desperdiçá-las sem qualquer remuneração. O bairro estava sem água naquele momento.

Calculava num embrulho de pão quanto do mês ainda suportaria, quando o tubo de tinta secou. Quis tomar algum ar emprestado, mas a já tormenta fez nascer goteiras – o balde estava furado. Quis insistir, contudo bolinou demais a fechadura e quebrou, nela, a chave; era uma questão de temperamento. Mas havia o controle remoto, porém este disparou os canais, editando alegorias, decompondo o zinco das baterias que sempre o abandonavam. De qualquer forma os galhos de alumínio traziam os chuviscos para a tela: reduziu o volume e fixou-se nas molduras das paredes cujas fissuras cuneiformes não podiam ser traduzidas.

Somente os não-tolos erram: em um dos sobrados arruinados ao lado, um casal de felinos constrangia-se com a umidade. Um deles mensurou errado a distância e pulou assim mesmo.

O que dizer daquele velho aparelho que prescrevia melodias em caso de constipação? O disco girava, mas um cisco no leitor ótico estacionou a parábola numa mesma frase. Substituiu o ritmo; nem nada mais funcionou.

 Deitou-se então no leito, a escoliose do lastro rompeu-se. Pensou em ser apossado pelas sombras de uma leitura, enfim lembrou-se que vendera tudo o que era escrito para ter como cozinhar a lentilha.

Pontualmente às dezenove horas, coletores pretendiam desvendar o seu lixo. Correu ao imaginar ter escutado uma descarga familiar. Em suas mãos, alguns sacos desassistiam frutas purulentas e um velho aparelho portátil. Saltou pela janela, pois havia desistido da cotidiana entrada. O emissor de fumaça já escapara, então recordou que um dos joelhos ficara na ensopada varanda.

Lívido, como de hábito, buscou um itinerário naquela noite que copulava sem muito entusiasmo – talvez pelo bálsamo excretado pelo veículo em toda a extensão da rua. Tentava aliviar a dor, ou mesmo deparar-se com alguma cura, quando viu pelo caminho um conhecido animal sagrado escalando, solitário e manco, o sopé de um imóvel em decúbito.

* Ed Samper é bacharel em letras pela UFBA e (quase) mestre em cultura e sociedade pela mesma instituição.
** Don Guto faz parte do Conselho Editorial da Transa Revista.

1 comentários:

15 de maio de 2011 às 08:35 chocalhodecascavel disse...

Psicodelia, poesia e essência
o cotidiano urbano descarnado
e posto a mostra em forma de palavras.
Do capital a capital de concreto
empacotando e impermebilizando
as relações sociais humanas...

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