JURACI DÓREA REVISITADO (1º Parte)

|Por Camillo Alvarenga|

Em outubro de 2004 através das Edições Cordel veio a público a Coleção Beiço de Jegue Não é arroz Doce -1, que conta no conselho editorial com Roberval Pereyr, Antônio Brasileiro além de Trazíbulo Henrique Pardo Casas e Salete Aguiar nomes de ativismo literário na cena artística baiana. Destacamos para uma breve análise a pequena antologia poética assinada por Juraci Dórea e intitulada Nuanças.

Um pouco menos de 40 poemas compõem as páginas deste libelo, que traz na apresentação as palavras do poeta e professor Antônio Brasileiro, que descreve nosso autor como “artista múltiplo. Escritor, pintor, arquiteto, desenhista, fotógrafo” o que nos põem diante de um desafio, estar frente a uma personalidade criativa poliédrica e que ainda sim tenhamos que nos ater apenas ao poeta.

O que se demonstra impossível. Na verdade, não há o poeta sem o desenhista, sem o artista plástico, o operário da palavra escrita é resultado de todos esses artífices reunidos para a sugestão do efeito linguístico que é poesia. Assim conscientes de que estamos lidando com uma consubstanciação de métodos artísticos de apreensão da realidade exterior opera-se o imbricamento tanto no sentido da produção intelectual quanto da recepção estética de obras desta natureza meta-sinestésica.
I.
No poema que abre a coletânea “RECEITA PARA DECIFRAR O OBLÍQUO” indica-se um sussurro sócio-antropológico da condição humana o terceiro verso da penúltima estrofe é um indício “à fuga ao mito ao pacto” entre “centauros” e “gaivotas”.

Em “A NOITE” um par de versos entre parênteses elucida um enigma misteriosamente “(abro a janela da astronave/ E amanheço completamente)” de forma totalizante qual o que se sente a penetrar na “aventura da aurora”. Logo após “NADA DE NOVO” entre a repetição continua do conectivo “e” “e o sol parte-se/ de novo/ e vejo a amarga letra das horas”, e repete-se esta estrutura rítmica e melódica por todo poema até que quem escreve se permite ir... “e divago e decifro e me despeço/de novo”.
Na lírica juraceana, o “mordomo” esta em plena assonância com “monótono” como no terceto que por seu fundo semântico e arcabouço de tiro curto e de sagaz racionalidade nos lembra um “HAIKAI” latino “só o mordomo sabe/que o recital/será monótono”(“NOBLESSE OBLIGE”)

“CONVERSA QUASE SUTIL” é mostra de como são as relações entre o eu-lírico de nosso escritor e suas demandas estéticas no platô da lascívia de um intimismo metaforizado em palavras que nos dizem que além do escrito há um mar literal de signos. “Por isso, amiga,/quando a vila adormecer/e a lua se for/mesmo com a cama dura/vamos foder, amiga.”

Página a página percorremos, mas não alcançamos. Não alcançamos a porta, não alcançamos saída para o conjunto alegórico em que semil-metáforas se agrupam para nos desagregar do concreto, para deixar-nos incorrer na órbita do nu. Ficamos arremessados nos “desvãos” do Juraci e seu “pedregal” onde “se o poeta é inculto e amargo?” “no vasto e impenetrável”, “por que não se abriria”, “se a alquimia é vã”, “ se no álbum de fotografias/ não há senão o esconso retrato”. E neste poema “O RETRATO E O INÚTIL” a poesia abre o poema, como a raiz abre a terra para dentro, para o fundo das profundezas do chão, abre a técnica e a esvazia, abre a química mágica das palavras e tencionado o reflexo se desfaz na superfície de letras e interrogações “nos desvãos de mim”.

Na “VALA” construída por este “(mesmo que seja inútil)” “Ouve”, “Contempla”, “Espera” “pois as ruas estão desertas/ e os bailarinos são cegos/ e obscenos.” E então desertamos todos e próximo ao olvido, esperamos, contemplamos, ouvimos já que lá fora em meio a “la calle”, a verdadeira “vala”, os artistas vão pela escuridão e obsequiando...
Vinte folhas depois de iniciada a leitura temos esse saldo: cada vez mais em débito. A poesia nos rende leitor, nos assume e abandona. Mas ainda como alunos a consumimos, com seus mimos e rebeldias, com sua “LIÇÃO DE GEOGRAFIA” que nos aponta veladamente o segredo para “decifrar enigmas” de forma que “(sobretudo)” para o poeta “os homens/existem para consertar relógios/recitar poemas e (sobretudo)/ decifrar enigmas”, logo, ser humanidade é que “não é tarefa para homens”.

Feito de dísticos bem arquitetados entre a partícula verbal “é” e o artigo masculino singular “ o ” que pede um complemento nominal em cada sequência do giro deste

“CARROSSEL”:

É de silêncio e nuvem
O lado avesso da mulher

É de murmúrio e fogo
O mudo aceno desta boca

É de silêncio e luz
O limo oculto do punhal

É de murmúrio e gozo
O manso tédio deste corpo

Sugerindo ao poema o encadeamento de um carrossel dos parques de nossa diversão, com uma leveza que “lado”, “mudo”, “limo”, “manso” emergem da lauda, se estendendo do “murmúrio” e do “silêncio” que resigna o “avesso” “aceno” “oculto” “tédio” e a “mulher” que ora é “nuvem” e traz na “boca” o “fogo” e o “punhal” de “luz” crava naquele “carrossel” que é “corpo” seu “gozo”.

Dessa maneira o autor nos lega, um lírico exercício numa espécie de mixagem do real posto as formas que toma a linguagem quando dadas ao papel ou à tela, articulando uma propriedade de técnicas e olhares – ao efeito de Merleau-Ponty em o olho e o espírito – percepções e maneiras bem peculiares de sentir e produzir o poético corporificado num artefato concreto.

Objetivo, clarificado o discurso, categoricamente estilístico, identificado, catalogado, descrito, fotografado, corrido e esperado por aqueles que apreciam e degustam poesia.

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