Futebol de Botão

Texto Ed Samper*
Arte Don Guto**


Loreta era fútil. Não gostava de enfrentar a realidade, preferia subornar o árbitro antes das partidas. Ela andava meio abatida nas últimas semanas, pois havia perdido o emprego que possibilitava estrangular com um bom padrão de vida o que havia de fato em sua volta. Sua primeira providência foi terminar o namoro com Pedro, moço bonito e pouco capaz. Ele, esforçado em sua área de atuação – tinha ganhado dois vice-campeonatos de futebol de botão  nos últimos dois anos -, não se importava em ter sido sustentado sua vida inteira, apesar dos trinta.

Loreta era forte. Suportou as brigas com o pai para manter sua vida sexual ativa aos dezesseis anos. Entregou-se às baladas, às drogas, aos estudos e à sua profissão com exemplar afinco. Deixou de falar com a mãe aos dezoito anos, pois esta, sem a sua autorização, usou escondido seu estojo de maquiagem. Aos vinte, ela apresentou sua amiga Carol  ao seu pai para que este começasse vida nova em outro casamento. Loreta era vingativa. Pôs fogo no apartamento de um dos namorados, após saber que ele a traia constantemente. Na época, seu pai ainda destinava uma boa mesada para a sua conta bancária o que possibilitou a contratação de um excelente advogado; pouco tempo depois, as lojas de materiais de construção do Seu João abriram falência.  Loreta deixou de falar com o pai aos vinte e seis.

Loreta e Pedro já moravam juntos, então. Ela era a filha única de um casal que se separara por sua causa. Sua paixão pelo atual vice-campeão do torneio de futebol-de-botão do condomínio esvaia-se como o dinheiro de sua conta bancária. Mas ele ainda era o mais bonito nas festas. Com a demissão do cargo de diretora de marketing de uma multinacional que estava retirando sua filial do país, teria de reduzir seu padrão de vida. Pedro até que não representava muitos gastos: academia, roupas, viagens, times de botão importados. Porém havia solteirões mais abastados no mercado. Não haveria mais campeonatos na Mansão 16 de um dos quarteirões mais valorizados da cidade.

Loreta, já casada com Aloísio Costa Pinto, herdeiro de um grande empreiteiro, recebeu  uma carta - veículo de comunicação em desuso - de seu pai que  solicitava alguma ajuda para recomeçar os negócios. Nela, contou sobre o fim do casamento com Carol que o sustentou por muitos anos após a sua  falência, devido ao seu alcoolismo. Seu João explicou que estava deixando o vício e que a intenção era recomeçar algum empreendimento, apesar da idade já um tanto quanto avançada e a mente um pouco confusa...  Depois dessa cansativa leitura, ela passou a ler todas as contas que deveria  pagar naquele mês e resolveu tomar um banho antes de partir para mais uma noite de congraçamento social com os amigos.

Loreta adorava viajar. Numa dessas viagens de férias com Aloísio em Paris, numa recepção do consulado do seu país na França, reconheceu uma senhora acompanhada de dois jovens. Era sua mãe a quem não via há quinze anos acompanhada de seus supostos irmãos. A princípio relutou em cumprimentá-la, mas, por curiosidade,  interrompeu  uma conversa que a distinta senhora empreendia com um grupo de amigos. Alguns meses depois, já em casa, recebeu pelo correio uma encomenda sem remetente postada na França: era um estojo completo de maquiagem da marca Lâcome acompanhado de um cartão que continha a frase: Obrigada pelos dezoito anos de sua companhia.

Loreta era saudosista. Mantinha um caso secreto com Pedro que se tornara presidente da confederação de futebol de botão e ainda mantinha hábitos simples como correr na praia e andar de ônibus – mesmo com a boa mesada que Loreta lhe remetia por mês. Tinha também o costume de enviar cartas apaixonadas, cada vez mais obsoletas, para a caixa postal de sua amante. Mesmo sem ter vencido um único campeonato sequer, adquiriu um certo prestígio junto aos aficionados pelo jogo devido à sua abnegação e persistência. Possuía uma inacreditável coleção de times, além dos mais variados campos. Tinha boa técnica, disputou campeonatos até no exterior, porém não conseguia superar adversários em momentos decisivos. Sua primeira partida foi aos cinco anos, sua última, trinta e cinco anos depois. Fora colhido por uma moto, após postar mais uma de suas cartas para Loreta. Uma semana antes quase ganhara um campeonato. Teve um tiro livre no último minuto, mas a bola inadvertidamente chocou-se com a trave. Ele jogava pelo empate.

Loreta era feliz. Contribuía religiosamente para fundações assistenciais. Não teve filhos, mas adotou três. Tinha boa saúde apesar de um pouco hipocondríaca; passou a frequentar reuniões de um grupo evangélico, apesar de sua presença nos cultos não ser habitual.; podia ser vista em recepções concorridas, organizando eventos, sendo entrevistada em revistas.; teve outros amantes, fazia reparos no corpo; empreendia leitura de romances algumas vezes; detestava cinema, mas lia os resumos dos filmes em cartaz para poder se comunicar bem em ambiente social; aliás, acompanhada de sua gente podia até explanar sobre temas como política e ecologia, sem se aprofundar muito para não ser taxada como chata.

Loreta sabia como sedimentar suas escolhas. Sabia como equacionar seu tempo – apesar de ter se esquecido de ir ao funeral do pai. Sabia escolher boas roupas, bons vinhos, bons restaurantes, bons carros e ainda reverenciava a memória de Pedro organizando campeonatos de futebol de botão para os garotos do seu luxuoso condomínio.

* Ed Samper é bacharel em letras pela UFBA e (quase) mestre em cultura e sociedade pela mesma instituição.
** Don Guto é um Grande amigo da Transa Revista.

1 comentários:

6 de março de 2011 às 06:11 Marcos Rosa disse...

Bom texto, comcei e não conseguir parar... li de um fôlego só! Parabéns.


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http://algunsfilmes.blogspot.com/

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