2011, verão, capital da Bahia.

 |por Camillo Alvarenga*|

Parece outra cidade.
A cultura lateja nos ladrilhos,
diferente daquela região urbana
e hostil de um litoral atlântico
prenhe da diversidade.

BRA/POR/ESP, 10. 2:05

Pela 12º semana em cartaz no Cine XIV – Rua Frei Vicente, 14, Quarteirão Cultural, Pelourinho – a película: José e Pilar, de Miguel Gonçalves Mendes, traz a tela um documentário sobre a vida do escritor português José Saramago e de sua mulher Pilar Del Rio, jornalista de Espanha.

Neste parágrafo poder-se-ia parar este texto, se fosse apenas uma crítica ou um olhar sobre a fílmica cosmopolita; para além deste registro do filme e seu contexto, importa aqui pontuar o espaço-cinema no qual sua exibição se insere, uma sala pertencente ao Circuito de Cinema Salas de Arte – Salvador.

Existente na cidade, o circuito foi iniciado no extinto Clube Baiano de Tênis, demolido o espaço juntamente com parte do antigo clube. Hoje, conta com sessões fixadas em salas no Pavilhão de Aulas do Canela da UFBA, no Museu Geológico da Bahia, no Museu de Arte Moderna, além é claro da sala já citada do Pelourinho e de realizar eventualmente sessões no Teatro Moliére, na Aliança Francesa.

A escolha dos locais para as instalações do circuito perpassa por pensamento inicial em dois sentidos claros: revitalização e resignificação do uso de equipamentos culturais, principalmente espaços públicos. Em tempos mais atuais o circuito se ampliou para o bairro classe média/alta do Itaigara, com criação da sala de arte – Vivo. Tal deslocamento tendencia nosso olhar para um viés comercial do projeto, que ocorre no intuito de atender clientela cinéfila cujo padrão sócio-econômico a distancia dos bairros do mal cuidado Centro de Salvador.

Logo se vê então que em torno do formato dos Multiplex cine fixados em salas de shopping e voltados para distribuição de blockbusters, emerge um cenário, ainda que não tanto democrático quanto se deseja, mas talvez um pouco mais plural de acesso a arte cinematográfica.

A criação do circuito surgiu de uma carência soteropolitana por espaços para exibição de ficções e principalmente documentários que se distanciem da lógica hegemônica no mercado de distribuição no Brasil. Obras consideradas intelectualizadas, filmes de arte e/ou cinema de autor, compõem o arsenal fílmico do que poderíamos denominar um cenário cine-cult, cujo público encontra lugar, sobretudo, em rodas universitárias.

A valorização do cinema nacional ou ainda de filmes internacionalmente fora do grande circuito comercial são trilhos por onde caminha a curadoria dos espaços salas de arte. Nesta linha nos deparamos com José e Pilar, produzido em co-parceria ibérico-brasileira, personificada por aqui na figura de Fernando Meireles, diretor que também é personagem da narrativa documental, quando da passagem do lançamento de seu longa Ensaio sobre a cegueira, baseado em livro homônimo de Saramago.

Assim pós esta ressalva cine-sociológica, na qual se contextualiza a exibição de José e Pilar, partamos a abordagem do longa. De fato uma sessão tocante, uma(s) câmera(s) no rastro do pensamento de José, onde se espalha o ângulo dum artista em pleno estado de convivência com a criação e seus pesares, com a cobrança do público e a pressão da imprensa.

Sem menor importância, a fílmica elege Pilar como a continuidade do sentido do filme, assim como queria Saramago, que a mulher o continuasse. O papel desempenhado por ela na vida do escritor é de profunda sensibilidade e entrega, além é claro de resultar-lhe em benesses, como a presidência da fundação que leva o nome do autor. Representa ainda no filme, a personagem de uma embaixadora da Espanha, na ilustração de uma contenda entre Portugal, o país natal de José e todo o reconhecimento que ele consegue no outro país que compõem a península ibérica. Vizinho a esse certame fica exposto em José e Pilar, o enorme alcance que tem obra do escritor e o cosmopolitismo de seu ativismo literário: “vivo desassossegado e escrevo para desassossegar”.

A filmagem do cotidiano de trabalho e sua intimidade caseira são intercaladas com externas em locais onde o casal cumpre obrigações ou escolhe visitar, dentre estas locações, algumas possibilitam à fotografia planos poéticos traduzidos em imagens de paisagens naturais belíssimas.

O filme gira em seus momentos mais dramáticos no segundo acto, a determinação por cumprir os compromissos gerados pela importância da obra literária do escritor e pela postura política do casal resulta no clímax da película, quando coloca em primeiro plano o dilema do internamento de Saramago e seu possível falecimento.

Este cotidiano frenético marcado por inúmeras viagens que vagam entre América e Europa é mostrado no documentário através de muitas entrevistas no interior de carros e imagens dentro de aviões, resultando em muitas locações. Isto apesar dos três actos que dividem a história serem datados do final da década passada.

O ritmo da narrativa é acelerado durante o prenúncio da doença, enfatizado pela velocidade da trilha sonora, cuja originalidade contribui para construção de ápice narrativo. Aqui, elementos fílmicos como a montagem acelerada se unem a acontecimentos dramáticos da vida documentada para dar a tônica deste momento da história.

A tensão se dissipa no terceiro acto abrindo caminho a conclusão de um romance que ele escreve por todo o longa, A viagem do elefante. A contextualização dos quadros e o encadeamento das cenas sempre com uma sombra de névoa sobre os takes, um set feito da vida real e a aparência de um deslocamento temporal entre tantas viagens e países constroem o espaço-tempo e o universo do filme.

Percebe-se desde o inicio da película a escolha pela câmera fixa e por muitas entrevistas das personagens para contar a história, fazendo nos depararmos com algum classicismo norteador da linguagem cinematográfica. Em que pese, escolhas da direção por se valer de cenas descoladas do contexto documental, criando momentos de encenação para as nossas personagens.

A ficcionalidade momentânea é promovida por cenas que referenciam A viagem do elefante se utilizando de miniatura de brinquedo como elemento lúdico, apresentada pelo casal durante o filme como se quisessem nos dizer que também aquela trajetória documentada fosse uma grande viagem.

Curiosa ou tendenciosamente o documentário acaba no Brasil  onde - assim como Ricardo Reis, enigmático heterônimo de Fernando Pessoa que viaja para o Brasil para terminar a vida –  terá Saramago deixado uma pista de que pós morte viveria o espírito do escritor no país? Sabemos que sua obra tem sim, aqui, um clamor desesperado, ou melhor, desassossegado, o que não nos impede de confabularmos sobre nuances que pode-se escapar.

De forma que entre auto referências de Blindness e outras indicações de leituras como as Intermitências da Morte, o audiovisual cristaliza de sobremaneira o que é ser um artista no século XXI com suas queixas e memórias, rasgos e verdades, ilusões e reconhecimentos. Tendo em vista que “nos encontraremos em outro sítio” deixo-vos... 

*Camillo é Bacharelando em Ciências Sociais na Federal do Recôncavo, ainda exerce atípica função de "correspondente estrangeiro " da Transa Revista na cosmopolita Cachoeira de então.

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