A deserção do cotidiano

Texto Ed Samper*
Arte Don Guto**

O carro de boi tentava atravessar a pista que perfurava o lugarejo sem dentes de um rincão que cochilava com a boca aberta. Levava material de construção para as reformas das casinhas apenas vistas do alto de uma colina desmatada, quando emborcou com o peso, colhido por um ônibus.

 A carroça era puxada por dois velhos bois zebus ainda vigorosos que pouco necessitavam de açoite para perseguirem o itinerário de Nezinho. Transportava de tudo o quanto fosse preciso: de mantimentos para as terras mais afastadas do vilarejo, até defunto. Nezinho, senhor com léguas de histórias, pés emoldurando calos, mãos amareladas e sorriso de barro, ostentava um chapéu de palha destrançado e arredio na cabeça. Cruzava a beira da estrada cumprimentando os que passavam nos veículos que perfumavam o ambiente com os fluidos de suas descargas. Às vezes atrapalhava o trânsito sugerindo insegurança para os motoristas.  Muitas vezes metia medo ao conduzir vergalhões mal-amarrados que faiscavam o asfalto.

Nezinho morava só, e se defendia: seus filhos foram ser “doutores” na cidade; sua mulher afogou-se no poço ao tentar reatar a corda ao balde. Não lia, nem escrevia, mas aprendeu a desenhar o nome. Numa dessas oportunidades de praticar a caligrafia, teve que assinar uma ocorrência, pois tinha sido acusado de bolinar as filhas do vizinho enquanto capinava o roçado deste. Colecionava besouros e, nas horas vagas, trançava palha em cadeiras por um preço módico. Certo dia, Dona Joventina, vizinha antiga, levou duas para reparo e uma de suas netas derrubou o vidro de besouros vivos que ele mantinha numa prateleira torta na sala. Desesperado com a perda e em meio ao vôo rasante dos bichos, ele ameaçou as pequenas.

Nezinho era solidário; ajudava a transportar comida em época de seca para os povoados mais afastados da cidade. Muitas vezes nem comia, realizando viagens noite adentro. Desta forma, era benquisto pela maioria da comunidade, apesar de expressarem certo estranhamento por ele. Esculpia bonecos de madeira e distribuía às crianças em épocas especiais, cavava voluntariamente poços artesianos num ritmo de trabalho que assombrava os moradores que já o consideravam bastante idoso para a função.

Nezinho era falante e tinha boa memória. Era um homem de uns 70 anos e relatava fatos de seu passado sem muita bravata, apenas relatava – num tom seco e uniforme. Gostava de ter histórias para contar e de ter ouvintes. Certo dia, ele foi ouvido pelo sumiço de uma das netas de Dona Joventina e contou ter visto um grupo de forasteiros rondar pelas pequenas propriedades das redondezas. Descreveu os homens como sendo da cidade grande e levou os inquisidores até um local que aparentemente tinha em seu terreno marcas de veículos.

Havia anos que ele não recebia a visita dos filhos; eles não vieram para visitá-lo no hospital nem para o seu enterro. O velho pai tinha os criado dignamente, diziam muitos: o trabalho na roça era planejado e permitia que as crianças não perdessem aulas. Quando chegaram no limite da formação do vilarejo, mandou-os para um grande centro vizinho onde concluíram os estudos e caíram do seu mundo. Ia visitá-los todos os meses e economizava o máximo para mantê-los até perder contato definitivo. Outros falavam de sua ferocidade e de como espancava as crianças obrigando-as a estudar e trabalhar. Numa dessas sessões, contam, ouve uma intervenção da esposa que foi encontrada dois dias depois no fundo do poço, as crianças não foram mais a mesmas: passaram de alegres a taciturnas, de obedientes a indiferentes.

O carro de boi cruzava os labirintos desvendados por pessoas desconhecidas: um homem de velho rosto talhado e mínimo físico esculpido irrompia distraído por estradas recém-nascidas. Os tecidos de suas roupas confundiam-se com os do seu corpo; seu semblante era grave, mas seu aspecto sereno. Enquanto que as linhas de suas mãos foram apagadas por uma tênue camada de pó amarelado. Transportou de tudo, viveu como pode: segurando as rédeas que orientavam o itinerário dos animais. Escutou o veículo não muito longe e não disparou o sino, atravessando a pista com o pensamento no orgulho de abrir sua própria cova para não legar dívidas.

* Ed Samper é bacharel em letras pela UFBA e (quase) mestre em cultura e sociedade pela mesma instituição.
** Don Guto é um Grande amigo da Transa Revista.

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