Raymond Carver – poeta e contista estadunidense

|Por Ederval Fernandes|

Raymond Carver (1938-88) foi um dos poetas e contistas estadunidenses mais talentosos do final do século XX. Morreu precocemente aos 50 anos, vítima de um câncer na garganta, proveniente, talvez, do tabagismo excessivo – além de ter sofrido por muitos anos de alcoolismo. Carver ficou conhecido como gênio da “literatura minimalista” e do “realismo sujo” por conceber um estilo direto e focar sua temática em anti-heróis, pessoas ordinárias da classe média baixa estadunidense. Para além de conceitos fáceis e rígidos, como estes, destacam-se em sua obra ficcional e poética a continuidade e a reinvenção da tradição literária estadunidense de estilo enxuto, cortante e irônico tão caro à obra de Ernest Hemingway (um gênio inigualável) e muitos outros escritores talentosos como John dos Passos, John Steinbeck, John Fante e Charles Bukowski, estes dois últimos infantilmente desprezados pela “crítica séria”.

É em Bukowski, aliás, que encontro similitudes profundas e esclarecedoras sobre a poética carveriana; ainda, para nossa grande infelicidade, inédita no Brasil. Mais abaixo seguem quatro poemas do autor pescados do site da Folha de São Paulo, especialmente traduzidos por Cide Piquet para uma edição da Ilustrada que à época publicizaria o lançamento de Iniciantes (Companhia da Letras, 2009), lendária coletânea de contos do autor. Percebemos uma poesia de enorme tom confessional e que prevalece, sobretudo, uma estrutura narrativa muito próxima da crônica.

Livros publicados no Brasil

Ao contrário do que acontece com a sua poesia, aqui no Brasil temos boas opções para conhecer sua elogiada obra ficcional. Até mesmo a editora Rocco lançou-lhe numa edição modesta e desconfiável no final dos anos oitenta, e que agora, ao que tudo indica, se encontra esgotada.

A Companhia das Letras, no entanto, é que parece apostar boas fichas no potencial mercadológico do escritor. Em 2009 lançou Iniciantes, volume de contos contendo os originais das narrativas que foram publicadas editadas nos anos oitenta com o título de What we talk about when we talk about love? (Do que estamos falando quando falamos de amor?). Conta-se que Do que estamos falando... sofreu uma edição mordaz do então gabaritado editor Gordon Lish, que diminuiu o livro pela metade, cortou personagens, trechos que julgava desnecessários, mudou títulos de contos, e que deu a Raymond Carver (além de um enorme desgosto) sucesso de crítica e público.  Foi nesse período que o escritor ganhou notoriedade pelo estilo “enxuto” de Do que estamos falando... e, ademais, o laurearam como mestre do minimalismo.

Agora, em 2010, a Companhia das Letras lançou 68 contos de Raymond Carver. A própria editora se vangloria por oferecer ao leitor brasileiro uma edição panorâmica da obra contística de Carver. Ainda segundo ela, apenas nos Estados Unidos há edição semelhante.





4 poemas de Raymond Carver retirados do livro All of Us – The Collected Poems (Vintage, 2010),  tradução de Cide Piquet.
Felicidade

Tão cedo que ainda é quase noite lá fora.
Estou perto da janela com o café
e tudo aquilo que sempre a essa hora
nos passa pela mente.
Quando vejo o garoto e seu amigo
subindo a rua
para entregar o jornal.
Eles usam bonés e agasalhos,
e um deles traz uma mochila nas costas.
Estão tão felizes
que nem sequer conversam, os garotos.
Acho que, se pudessem, estariam até
de braços dados.
É de manhã bem cedo
e os dois caminham lado a lado.
Lentamente, eles vêm vindo.
O céu começa a clarear,
embora a lua ainda paire sobre a água.
Tanta beleza que por um instante
a morte e a ambição, mesmo o amor,
não se intrometem nisso.
Felicidade. Ela vem
inesperadamente. E vai além, na verdade,
de qualquer discurso sonolento.

Dirigindo e bebendo

Já é agosto e eu não
leio um livro há seis meses
a não ser por um troço chamado A Retirada de Moscou
de Caulaincourt.
Ainda assim, estou feliz
andando de carro com meu irmão
e bebendo um pint de Old Crow.
Não estamos indo a lugar nenhum,
só estamos indo.
Se eu fechasse os olhos por um minuto
estaria perdido, contudo
eu poderia facilmente deitar e dormir pra sempre
na beira desta estrada.
Meu irmão me cutuca.
Para que algo aconteça, está por um triz.

O que o médico disse

Ele disse não parece bom
ele disse parece mau aliás muito mau
ele disse eu contei trinta e dois deles em um pulmão antes
de parar de contar
eu disse fico feliz não ia querer saber
que tem mais do que isso lá
ele disse por acaso você é religioso você se ajoelha
em bosques na floresta e se permite pedir ajuda
quando encontra uma cachoeira
a névoa soprando contra seu rosto seus braços
você para e pede clareza nesses momentos
eu disse não mas pretendo começar hoje mesmo
ele disse sinto muito ele disse
gostaria de ter outro tipo de notícia para dar
eu disse Amém e ele disse algo mais
que eu não entendi e sem saber mais o que fazer
e sem querer que ele precisasse repetir aquilo
e que eu realmente precisasse digeri-lo
apenas olhei para ele
por um minuto e ele olhou de volta foi então
que me ergui num salto e apertei a mão daquele homem acabara de me dar
algo que ninguém no mundo jamais tinha me dado
talvez eu tenha até agradecido por força do hábito


Medo

Medo de ver a polícia estacionar à minha porta.
Medo de dormir à noite.
Medo de não dormir.
Medo de que o passado desperte.
Medo de que o presente alce voo.
Medo do telefone que toca no silêncio da noite.
Medo de tempestades elétricas.
Medo da faxineira que tem uma pinta no queixo!
Medo de cães que supostamente não mordem.
Medo da ansiedade!
Medo de ter que identificar o corpo de um amigo morto.
Medo de ficar sem dinheiro.
Medo de ter demais, mesmo que ninguém vá acreditar nisso.
Medo de perfis psicológicos.
Medo de me atrasar e medo de ser o primeiro a chegar.
Medo de ver a letra dos meus filhos em envelopes.
Medo de que eles morram antes de mim, e que eu me sinta culpado.
Medo de ter que morar com a minha mãe em sua velhice, e na minha.
Medo da confusão.
Medo de que este dia termine com uma nota infeliz.
Medo de acordar e ver que você partiu.
Medo de não amar e medo de não amar o bastante.
Medo de que o que amo se prove letal para aqueles que amo.
Medo da morte.
Medo de viver demais.
Medo da morte.

Já disse isso.

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