Feira Noise Festival – o sábado, os shows


Integrantes da banda Graveola e o Lixo Polifônico. Foto: Maria Dolores

Sábado, 23. Segunda noite de shows do Feira Noise Festival, cuja edição inaugural se deu no ano passado. Cheguei cedo o suficiente para conferir a Casa de Vento, primeira banda a se apresentar. Algo que pouquíssima gente quis fazer, a julgar pelas arquibancadas quase vazias do Teatro de Arena. Assim que me acomodei lá no alto, a fim de – bem ao meu estilo – tudo observar sem ser notada, alguns arriscaram suposições: “é muito cedo”, “mais tarde começa a lotar”, “no hardcore a coisa melhora”. Essas pessoas não deixaram de ter sua razão. Depois das 20 horas, o público mais que triplicou. Nada que justifique, entretanto, a apatia quase generalizada quando o assunto é propor eventos alternativos em Feira de Santana. E não apenas por parte de quem abre mão de comparecer.


Como jornalista ainda relutante em adentrar o contexto da prática local, devo admitir que a imprensa comum em geral, por assim dizer, ignorou solenemente o acontecimento. Isso acaba originando um outro festival, o dos subterfúgios daqueles que se eximem de suas responsabilidades. Se a mídia apela para o velho clichê de ser pautada tão somente pelas preferências do espectador/consumidor, supostamente inexoráveis e soberanas, o público culpa a ausência de divulgação nos grandes meios pelo fracasso de certas tentativas de alavancar o cenário cultural de abrangência mais restrita. Assim se torna mais fácil, ao jornalismo, abandonar o compromisso com a abertura e manutenção de canais que incentivem a pluralidade. Ao público, surge a desculpa ideal para os “braços cruzados”.


Todavia, penso que a questão maior não depende tanto desse embate de incompetências. O cenário seria forte por si só, caso a tarefa de propagá-lo não estivesse tão concentrada nas mãos dos organizadores. Muitos conhecem e se manifestam sobre as necessidades, mas são poucos os que agem deliberativamente. É de se questionar por que esses eventos se assemelham mais a uma espécie de extensão dos módulos 2 e 7 da UEFS que a qualquer outra coisa. Onde estão aqueles amigos que nunca pisaram na universidade e curtem o som? Em qual lugar se esconde aquele ex-membro de alguma banda que parou há anos e, apesar disso, nunca se desvinculou da música enquanto apreciador? Estão todos por aí, aguardando um chamado que os faça se sentir em casa novamente.


Mas voltemos à música. Retornemos à Casa de Vento, banda feirense que me agrada desde o nome. A sonoridade? Essencialmente britânica, lembrando muito o Radiohead e seus derivados. Remete, por consequência, às bandas brasileiras associadas a essa mesma fonte, dentre as quais tomo a liberdade de destacar o Violins. Ouvira todas as canções disponíveis no MySpace antes do show, e me surpreendeu a forma como “A Revolução dos Bichos” –  favorita à primeira audição – cresce ao vivo, sobretudo graças ao vocalista, um dos raros destaques numa noite em que a maioria dos vocais sequer correspondia à linha de seus respectivos grupos. A real surpresa, contudo, ficou a cargo do cover para o single “Irish Blood, English Heart”, sabiamente retirado do You Are the Quarry, o álbum que marcou o retorno soberbo de Morrissey em 2004. Prejudicados pelos velhos problemas técnicos, encerraram com mais uma música própria, “O mistério das cinco estrelas”. Viajante, estimulante. Há coisas boas na Feira, afinal, e em vários segmentos. O rock inglês será sempre bem-vindo, e a Casa de Vento também.


Pastel de Miolos é outro nome de extrema adequação e bom gosto, seja lá em que sentido o leitor me queira entender. Punk/hardcore digno de um trio que há tempos sabe o que faz e o que quer. Por razões óbvias, insuperável em quantidade de canções executadas. Uma por minuto, minuto e meio, com guitarrista e baixista alternando vocais e subtraindo sem indulgência o fôlego de dois ou três entusiastas próximos do palco. Como deve ser. Enquanto isso, o novo disco era comercializado por lá. Tudo corria conforme o esperado, até anunciarem uma homenagem à “melhor banda do mundo: Ramones!”. “Blitzkrieg Bop”, é claro. Contrariou minhas expectativas, pois aquilo que acabara de ver e ouvir tendia mais ao Dead Kennedys, por exemplo. Esperei uma “Chemical Warfare”, ou uma “Holiday in Cambodia”, e nenhuma delas apareceu. Revolta, palavras despejadas com rapidez e a maestria dos poucos acordes. Eis o que é necessário admirar para engolir Pastel de Miolos. E só vale a seco.

Parnaso da Modernidade chegou com um som mezzo blues, mezzo regional, não perdendo de vista o rock. Como o nome indica, a proposta da banda consiste em mesclar essas variações sonoras à poesia. Gregório de Matos não poderia faltar, nem os poemas próprios. É perceptível que as letras se encaixam de um modo distinto, como se mal cabessem na harmonia, ou como se esta fosse meramente secundária. Com os altos e baixos literais do vocalista, o esforço para absorver determinados versos é, eu diria, sobre-humano. Isso alimenta o mistério, ou um dos diversos que cercaram a breve apresentação. Trato de revelar o outro: a banda, vinda de Itaberaba, me era totalmente estranha. Confesso que não conhecia os conterrâneos e sua capacidade de produzir um som abarcante e básico ao mesmo tempo. Baixo, guitarra e bateria compõem a tríade suprema que possibilitam tamanho paradoxo, e aqui – para sorte de tantas outras bandas de rock que irão nutrir a posteridade – inexiste qualquer enigma.


O ecletismo da Parnaso da Modernidade indicou que algo estava prestes a mudar. Que logo emergiriam divisões dentro daquela divisão aparentemente indiscriminada. Rafael Damasceno, artista local que, pelo visto, eu era a única a desconhecer. E continuo desconhecendo o bastante para evitar avaliá-lo ou até opinar a respeito. Tudo o que posso acrescentar é qualidade do trabalho autoral, que demonstra um direcionamento bem traçado e sintonizado com influências marcantes na chamada “nova MPB”. Do blues dedicado ao Clube de Patifes à versão de Lenine, as referências capturaram o público, a essa altura mais numeroso e propenso à interação.

Rafael Damasceno.  Foto: Maria Dolores
 

A banda seguinte avivou as divergências de “interesses”, subindo ao palco com seis integrantes – flautista, vocalista/violonista, baterista, percussionista, tecladista e nenhum guitarrista. Graveola e o Lixo Polifônico, de Belo Horizonte, demorou a acertar os instrumentos. Em nenhuma outra ocasião, nessa noite, as intervenções de Don Maths soaram tão oportunas. Também custou a sair do palco. Quando se retirou, foi a contragosto de toda a platéia. Além do elementar Clube da Esquina, faz recordar Mutantes, Tom Zé e antigas tendências em voga, da bossa nova ao samba. A percepção do senso de paródia é igualmente imediata. Rolou cover no espetáculo, e eu sabia qual. Agora não lembro mais.


Naquele conjunto, Graveola pareceu incrivelmente alternativo. O alternativo do alternativo. Uns aproveitaram aquele instante como o ápice da noite, outros contaram os minutos para as últimas bandas. Um grupo alternativo dentro de um festival alternativo, mas nem tanto. Essa foi a impressão que restou, e a qual a sexta banda, Maglore, cuidou de corroborar melhor que ninguém. Não era difícil encontrar familiarizados com as canções, e não apenas porque o grupo é por demais difundido na cena. É muito mais que isso. É que a Maglore dispõe de uma acessibilidade natural, desprovida de constrangimentos. É o tipo de banda que reúne tudo quanto é necessário para figurar como prato principal no cardápio das rádios, MTV e similares. Agradou a todos, praticamente, e houve quem entoasse a música nova. Quando um metaleiro sentado ao meu lado gritou “Toca Raul!” – para não perder o hábito –, eles o fizeram. “S.O.S.”, imitação no mínimo hilária dos maneirismos vocais de Raulzito, Belchior atravessando por cima.

Vocalista da banda Maglore. Foto: Maria Dolores

A entrada da Diablo Motor coincidiu com a queda do público. Hard rock direto, calcado numa pegada recente. Lembra inúmeras bandas e nenhuma em especial. Os membros optaram por não tocar cover, o que desapontou a mim e a boa parte dos que acompanharam. O vocalista, além fisicamente associado ao herdeiro global de Fábio Jr., em nada corresponde ao que se espera de um frontman do estilo. Essa discrepância não é de todo negativa, já que trouxe um elemento original ao andamento do show. O repertório, cerca de cinco canções em português e uma em inglês, exibe uma identificação com o universo rocker e seus lugares-comuns indispensáveis. Ressalto o fechamento, que ratificou a maturidade dos instrumentistas, principalmente da cozinha, e empolgou a ponto de lamentarmos uma apresentação tão curta. 


No instante em que a Deformity BR – lenda do metal extremo que se isenta de apresentações por aqui – começou se preparar, o relógio marcava mais ou menos meia-noite. O único grupo que vi de perto, rememorando a adolescência e me juntando ao batalhão metaller que foi descendo as arquibancadas. O show – inútil caracterizá-lo em muitas palavras –, uma porrada sonora do início ao fim. Alternativos à enésima potência ou aqueles que babam por qualquer hype podem torcer o nariz para a estética, podem se negar a valorizar a música. Deformity BR segue desde 1995 e se mantém leal à fúria do splatter death metal. Isso importa mais que as críticas descabidas de um estereótipo a outro, carregadas de preconceito. Nada mais a acrescer. 

Contratempos me impediram de assistir à Voyeur, última atração. Testemunhas felizes e satisfeitas relataram, basicamente, que o público soube receber o electro rock. Fica registrado.

1 comentários:

30 de outubro de 2010 às 14:20 Maria Dolores S. Rodriguez disse...

O cover da Graveola e o Lixo Polifônico foi "You Don´t Know Me" do Caetano Veloso. Elementar, meu caro Watson ;)

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