Amar é...

| por Uyatã Rayra |



É um juízo quase unânime: homem que se relaciona com diversas mulheres é putão, viril, merecedor de louros. Mulher que agarra vários: puta, piriguete, rechaçada pela sociedade. O homem corno é inconcebível, motivo de chacota. Mulher corna: aceitável...

Tais considerações não são motivos para envergonhar-se; isso, aliás, é uma verdade inquebrantável, um dogma. Somos alfabetizados assim, reproduzimos a todo o tempo tais conceitos, acredito até que eles foram conservados e alastrados em nossos cérebros no decorrer dos séculos, e estão resguardados no nosso inconsciente coletivo – e talvez se revelem noturnamente nos nossos sonhos. 

As mais femininas das feministas, os revolucionários mais socialistas, os anarquistas mais anárquicos, os mais liberais dos libertários, o mais sábio dos ermitões, já observei em todas e todos estes os sinais mais vis do monopólio sobre o (a) cônjuge.  Já cheguei a pensar que somos todos e todas paternalistas, mas sinto resquícios de esperanças e alegria em saber que meu eu reducionista é estúpido.

A televisão nos ensina todos os dias como deve ser o amor, a paixão, a afeição. Telespectamos atônitos a amar e ser amados condicionados. Não nos é difícil ser assim, a maioria à nossa volta são, e nos sentimos bem quando aceitos pela multidão. O amor é restrito a linhas fronteiriças bem definidas, e a partir delas o ódio impera. 

Nós homens temos a falsa impressão de que nossas companheiras não sentem desejos - elas devem ser frígidas ao mundo e devassas somente a nós. Algumas mulheres também pensam assim. Nosso amor é chantagista, nos impede a alforria da semelhante. Não aceitamos que ela seja feliz distante de nós. Não queremos que ela vá para um evento sem nossa presença, viajar é impensável.  Se for, e se relacionar com outros, todo nosso gostar volatiza como éter. Somos imbecis. A virtude da prisão é o anseio em libertar-se.

As mulheres são mais cônscias - têm uma desconfiança quase certeira de que os homens são “traidores” natos. Contudo, em sua maioria, caricaturam o ideário machista com matizes quase idênticas, e chego a acreditar que quando a maioria delas aceita uma “traição¹” não é porque são libertárias, talvez seja um sinal da submissão feminina às imposições do nosso entorno, que asseveram o culto extremo aos ditames másculos. Quantas são as mães que só não se separam dos maridos promíscuos porque dependem financeiramente deles???  

Os homens, majoritariamente, são implacáveis. Ser corno talvez seja o segundo rótulo mais repulsivo no universo fundamentalista-masculino-heterossexual – o primeiro suponho ser a homossexualidade. Ser corno é algo que transtorna o ego, motivo inconteste para homicídio.

Aos dezessete anos despertei ao ler “Ame e dê vexame” - livro que relata idéias e vivências pessoais de Roberto Freire. Ele foi a primeira exposição literária, para mim, de como nossa sociedade, baseada fundamentalmente na propriedade privada, consegue nos fazer estender nosso impulso possessivo inclusive às nossas relações afetivas. Freire relata com êxito a incoerência da felicidade mútua numa relação na qual impera o regime de exclusividade. De lá pra cá, tentei ao máximo rever minhas posições e garimpar o conceito de relacionamento; todavia, ainda o profiro com algum pudor, devido à maré adversa. Assumir tal posicionamento de oposição ao senso comum não é simples – sem contar que tenho eu incrustado na minha existência grande carga de machismo ainda: para discursar basta-nos abrir a boca, a provação nos vem quando temos que assumir o discurso enquanto ato ...  


Engels, nos primeiros capítulos de “A origem da família, da Propriedade Privada e do Estado” toma como base os estudos de Lewis Henri Morgan², para demonstrar como se deu o desenvolvimento e a construção da família desde as sociedades comunais até a origem da sociedade civilizada patriarcal. Chamou-me a atenção as considerações e conclusões que o autor tece acerca da consolidação da família monogâmica:

“Foi a primeira forma de família que não se baseava em condições naturais, mas econômicas, e concretamente no triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva, originada espontaneamente. Os gregos proclamavam abertamente que os únicos objetivos da monogamia eram a preponderância do homem na família e a procriação de filhos que só pudessem ser seus para herdar dele.”

Numa nota precedente, ainda de acordo com Engels:

“Reconstituindo retrospectivamente a história da família, Morgan chega, de acordo com a maioria de seus colegas, à conclusão de que existiu uma época primitiva em que imperava, no seio da tribo, o comércio sexual promíscuo, de modo que cada mulher pertencia igualmente a todos os homens e cada homem a todas as mulheres.”

Não creiam que minha função nesse texto seja disseminar o culto à perversão e à orgia. Estou a discorrer sobre algo infinitamente mais sublime. Penso até que existem casais que conseguem estabelecer uma correspondência tão plena e recíproca, ao ponto de nem sentirem a necessidade de saciarem os anseios da carne alhures. O que não acolho é que esse modelo imposto - de que os casais sejam exclusos em si, tal qual “auto-suficientes” - seja estendido e adequado a todos os humanos, e que teime em se camuflar de sinônimo de amar. Perenizamos a noção de ser inconcebível o afeto por mais de um indivíduo, e repelimos com furor nossos instintos mais primitivos. Uma pena ... 

“Amor só vive em liberdade, o ciúme é só vaidade, sofro mais eu vou te libertar”. A maçã - Raul Seixas.


“O coração é pequeno demais para aprisionar os outros, mas grande o bastante para abrigar, quem ama não escraviza, quer ver o outro ser feliz a todo instante, mesmo distante ...
... amar não é depender, é ser o outro sem deixar de ser você!!!”.  
Sem título – Uyatã.



¹ Ponho traição em parênteses, pois creio que nosso conceito de traição é tão ínfimo quanto o de amar... Preferimos antes, trairmos a nós mesmos ...
² Antropólogo estado-unidense, que estudou a origem e evolução das sociedades humanas. 

7 comentários:

9 de abril de 2010 às 10:15 DSL disse...

É assombroso pensar que o amor, tal como entendemos, é uma invenção histórica. Intimamente, fiquei sem chão quando percebi que, em suas mais belas canções, Chico Buarque ou Vinícios de Morais reproduziam um padrão machista. Enfim. Eu gostava daquilo tudo, mais que isso, eu "era" aquilo tudo: sentia como se fosse comigo quando uma mulher de Chico compara seu ex ao homem atual; tremia com todos as declarações de posse apaixonada; aprendi com eles que se deve sofrer por amor e ser orgulhoso. E, permitam-me confessar, com a posterior descoberta de valores mais universais, pouco mudei.

Não gostaria de ser tomado, aqui, por um jovem antiquado; bem, talvez o mundo, mesmo, seja antiquado. Só queria apontar um ponto que considero relevante, que se soma ao que uyatã escreveu: alguns de nós estamos passando em revista certos valores morais, enquanto nosso padrão emocional permanece inalterado.

E mais - o samba não acompanharia a revolução sexual.

10 de abril de 2010 às 06:12 Unknown disse...

Talvez por isso foi criado o pagodão ... :)))

11 de abril de 2010 às 13:36 all disse...

amar a outro, amar a outros, amar a sí, amar a sís, amar a Deus, amar a Deuses, amar a mente, amar a mentes, amar o amor. Amar o Amor.

Amor Psíquico.

11 de abril de 2010 às 17:32 Anônimo disse...

Uia,depois de ler e reler seu texto eu fico a me perguntar:

- Pra que limitar o amor, o amar?

13 de abril de 2010 às 12:02 Unknown disse...

vc quer dizer que se Jesus voltasse agora ele iria usar tatuagem?
seria por isso que os telefones publicos nao funcionam? Ou seria apenas um estimulo para comprar um celular?

13 de junho de 2012 às 07:25 Tudo Por Helena disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
13 de junho de 2012 às 21:47 Unknown disse...

dança superficialidade..e Chico não é machista - nós somos.

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