Sonhos, sonhos.



Dormia como pedra, vomitava pedras em noites de verão. Mil agulhas costuravam a pele morta do meu calcanhar esquerdo e já não sentia dor. Caminhei por ruas tortas, mas seguia firme em linha reta; dei de cara com uma porta, choque que a deixou entreaberta. Um gato branco saiu e eu entrei, sem nada sentir. Como não parecia haver obstáculo, e em nada tropecei nos primeiros passos, corri, abri os braços, gritei, e espatifei a cara em algo que deveria ser uma parede. 

Não me arrependi. Senti gosto de sangue e lembrei que tinha fome. Pensei: vou sair daqui e acordar o velho da farmácia. Olhei para trás e vi luz do outro lado da porta. Não me lembro como saí dali. Segui pela esquerda naquela rua e parei em frente à botica. Toquei a campainha e pedi ao velho qualquer vitamina que me fizesse sentir vivo. Ele me deu um analgésico e um “Deus te abençoe”. Velho filho da puta.



Dobrei a direita na próxima esquina. Havia um buraco no muro branco e o matagal se mexia do outro lado – mas não parecia ser o vento. Coloquei a cabeça no buraco e fui rapidamente puxado para o outro lado por um coelho imenso que me olhava com olhos de fogo. Disse a ele: 

__ Que queres de mim, bicho das trevas? 

Ele nada respondeu, afinal era um coelho. Mas eu não desisti e continuei:

__ Quem pensa que eu sou? Alguma Alice? Você é um otário. Ah. E tem um gato preto atrás de você.

Ele se virou e eles começaram a lutar. O gato tinha garras afiadas e o coelho, como já disse, olhos de fogo. Aquela luta animal me entediava e eu tentava sair pelo buraco que entrei. Uma viatura preta passou pela rua, mas não parou para me socorrer.

Consegui sair e pensei que preciso mesmo ser um self-made-man. Ouvi do outro lado um miado triunfante e me pareceu que o gato preto havia ganhado a luta. O coelho otário se fudeu legal. Estava naquele momento sentindo que viver era um tédio e resolvi caminhar de cabeça para baixo. O céu é redondo mesmo, baby, vi com estes dois olhos que verme nenhum há de comer.


A escuridão do firmamento começava a dissolver-se num vermelhidão coagulado no horizonte leste. O Sol, concluí. Subi na primeira árvore que topei pela frente e me dependurei como um bicho preguiça, ao lado de morcegos cansados e empanturrados de sangue. Queria ver a dança da luz num ângulo privilegiado. Quando os primeiros raios de Sol encobriram de azul as estrelas que piscam onde só deus sabe, pensei: é agora! A música começava. Martelos soaram nas construções, pássaros cantarolavam nas mangueiras, motores queimavam gasolina, a máquina do mundo começava a se movimentar em seu ritmo frenético e alucinado.

A trilha sonora, admito, era pouca bobagem diante do que viria. Nada mais belo do que a valsa entre o azul e o amarelo – com o perdão da rima de merda. A valsa do amanhecer, harmonia eterna e vã. Mas nada importava mais, tampouco se a vida fazia algum sentido ou não. A valsa prosseguia e prosseguiria no dia seguinte, e seguinte, e seguinte... e eu era feliz e mais nada que se possa escrever.


M. Correia, Bacharel em Direito pela UEFS.

1 comentários:

22 de março de 2010 às 06:59 Anônimo disse...

De fato, não é de se estranhar a narrativa de tempos sombrios. Soa familiar a ir-realidade do caminhar por ruas tortas e, no entanto, seguir firme em linha reta, em seguida dando de cara com a porta. Inda mais quando se tem um quarto de centenário e está preso no século XX, rumo ao XXI. Sem nunca chegar.
O que poderia parecer uma "saída" não é, afinal o coelho branco - sempre evocado como sinal de fortuna - tem aparência nada inocente, inspirando alerta.
O gato preto, carregando o seu fardo de ser fonte de azar, cravou as unhas no falso coelho e construiu sua própria sorte. Vence o melhor nessa eterna disputa.
No buraco da parede há um portal para o caos, o tédio e a repressão, quando a busca inicial seria o “se sentir vivo” e “a vida fazendo sentido”.
Mas eis que o protagonista, ao final do conto, escolhe dar contorno otimista para sua empreitada pelo mundo, quando enxerga no horizonte o azul e o amarelo criando um elo pra enfrentar realidades gris. Diante do “eterno retorno” do qual o homem é prisioneiro, é possível, sim, escolher ressignificar a realidade vivida e [fluir com o/dançar a valsa do] tempo.
Ainda é possível ver na escuridão.

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