Da responsabilidade e da disciplina

É sabido que às terças sou eu, Ederval Fernandes, quem publica aqui no blog. É o meu dia. Foi assim acordado com os demais membros da revista quando acenamos à esse espaço uma possível “dinamicidade” – ou seja, desejávamos atualizações diárias. Escolhi a terça porque eu gosto, e porque gosto, não sei o motivo exatamente para isso. Mas hoje é terça e eu não tenho um texto pronto para publicá-lo. Estou aqui, no meio do trabalho, entre atualizações sistemáticas no site do jornal e doses torrenciais de chá de camomila (hábito que adquirir para desvencilhar-me do café), fazendo este exercício estilístico e pesando (não errei, é “pesando” mesmo) o que deve vir a ser responsabilidade e disciplina.


Responsabilidade e disciplina. Essas palavras soariam para mim, uns seis meses atrás, como sinônimos de uma vida medíocre. Senão medíocre, no mínimo ceifada do entusiasmo caro ao espírito jovem, e que na alma envelhecida (ou em envelhecimento), percebo como uma perda, ao contrário de alguns que acenam à transformação desse entusiasmo para uma instância mais branda, canalizada, sábia. Não se abranda o entusiasmo, se perde. A caminhada da vida é senão a perda do entusiasmo fundamental. É o desaparecimento do moleque fundamental.

Serei mais claro.

Para um moleque, tudo o entusiasma. Seja uma gude, um pirulito, uma bola, um punhado de terra molhada, não importa. O que lhe chega aos olhos, às mãos, não lhe estafa, não lhe deprime. O moleque só dorme porque desaba. O corpo não agüenta a juventude. Quando eu era moleque, passava tardes e noites infinitas jogando golzinho na minha rua e no terreno baldio atrás do antigo bar Acapulco, a que chamávamos eu e todo o bairro de “Campo do Eduardo”. Eu era entusiasmado com tudo aquilo. Vivia aquilo com paixão, só aquilo. Minhas tarefas de casa se amontoavam numa pilha incrível, tive série para deixar um livro de matemática completamente intocável. A verdade é que passei a minha vida colegial copiando todo e qualquer dever que os professores passassem. Nunca fiz um sequer. Hedonista completo. Não me sentia familiarizado com a disciplina e a responsabilidade do colégio. Apenas as aulas de literatura, filosofia e história causavam-me certo furor. Isto porque eu retinha o conteúdo com muita facilidade, só por isso. Mas mesmo assim tirava notas medíocres. Nunca liguei pra nota. O moleque está se lixando para a nota. Não só o moleque, o homem sábio também. Das raras vezes que eles são um só. Mas não me entendam mal. Não estou opondo o moleque ao homem sábio com o propósito de dizer que o moleque é ignaro. Não. Oponho a impetuosidade natural do moleque à ponderação talhada do homem sábio (ou envelhecido, sei lá).

Mas o fato é que ontem, na madrugada inesperada do Feira VI, soube dos últimos acontecimentos envolvendo meus nobres amigos que dividiam uma casa lá comigo. Quer dizer, de um deles. O mais responsável e disciplinado. Soube que bebera muito, brigara na rua, no meio da chuva, que estivera na casa de amigas por volta das três da manhã com intuitos no mínimo enigmáticos como “meter o dedo na tomada da cozinha” e assim por diante. Estava acompanhado de um outro amigo nosso que fora interceptado por uns caras de bicicleta, que por pouco não lhe espancaram, o que o fez voltar em casa, buscar uma faca, um litro de pitu e um violão e sair à caça desses “filhos da puta”. Viram até um “corre-nu”. Me contaram isso entusiasmados, aos risos. Era o exercício da subversão que tanto me apraz, ou me aprazia, não sei dizer. Minha reação na hora foi de incredulidade total, e pensei depois que essa incredulidade provinha de um ritmo de vida que venho tendo (sob a égide da responsabilidade e da disciplina) que meus bons amigos estão conseguindo mesclar e que eu, finalmente depois de anos a fio guiado simplesmente pelo hedonismo, estou me sentido bem com a disciplina e a responsabilidade. Isso me espantou. 
Entendi mais uma vez o que Paul McCartney quis dizer com there is a long way between chaos and creation.

7 comentários:

23 de março de 2010 às 08:11 M. Correia disse...

A sensatez, a disciplina e a responsabilidade são tão necessárias quanto descartáveis.

[a lá felini, resolvestes a crise falando na primeira pessoa do PRESENTE. boa.]

sem mais.

um personagem.

23 de março de 2010 às 09:35 Anônimo disse...

O título bem que poderia ser "entre a cruz e a espada".

:)

23 de março de 2010 às 10:14 Jopatife disse...

Esta é a frase do dia "O corpo não agüenta a juventude", muito bom!

23 de março de 2010 às 11:32 Anônimo disse...

...aprendendo a jogar futebol e batendo bola com as contigências...da vida.
"Tá pensando que tudo é futebol?"
É isso e muito além, já me diziam "de Lara" e "do Amaral".

23 de março de 2010 às 13:40 Bruno Silva disse...

Não há nada pior do que sentir-se felizmente responsável. É o começo da velhice... Comecei a envelhecer aos meus 16 anos. Agora (aos 19) tento fazer o processo inverso. Nada fácil!

27 de março de 2010 às 07:10 Unknown disse...

"Hoje eu te chamo de careta...e você me chama vagabundo!"

Postar um comentário