Carnaval em Preto e Branco





A imagem construída sobre o carnaval de Salvador, muitas vezes baseada nas informações exibidas pelas limitadas câmeras das emissoras de televisão, apresenta certa uniformidade que acaba por camuflar as diversas contradições que vêm à tona nesse espaço. A uniformização que me refiro se constrói, em grande medida, através da exibição de uma sincronia corporal proporcionada pelo ritmo do Rebolation, pelas “ameaças” do lobo mal sobre a chapeuzinho vermelho, pelo grito desesperado por um Vale Nigth ou pela padronização das fardas dos blocos de corda. Essas imagens, sons e gestos acabam por construir a idéia de que todas as cores são iguais no carnaval.


Observar presencialmente pela primeira vez o carnaval me possibilitou a construção de uma imagem em outros tons, contrastada e muito mais diversa, permitindo a absorção de elementos que não são constitutivos da identidade carnavalesca. Foi possível perceber que as cores no carnaval de Salvador até se misturam, mas continuam muito diferentes. Os tons que escolhi para representar minhas impressões sobre essa grande manifestação cultural foram não por acaso o branco e o preto, e tentarei, agora com o preto sobre o branco, apresentar alguns elementos que sintetizam as referidas contradições que se tornam evidentes no carnaval. 




Tomarei como primeiro elemento os blocos de corda, pois apresentam muitos dos contrastes referidos e possibilitam uma boa visualização do recorte de cor, principalmente quando as referências são as cordas que separam os Chicleteiros ou os discípulos Durvalinos do restante dos foliões. A utilização do termo “bloco de corda” é mais simbólico que real, tendo em vista que a “proteção” do espaço que se privatiza por algumas horas em volta do trio é feita por uma corda humana e que, vale ressaltar, tem cor muito diferenciada da de quem é “protegido”. Essa corda humana se constitui também enquanto limite de ação da polícia, que atua do lado de fora, procurando os meliantes, marginais ou indivíduos suspeitos, jargões utilizados por eles para se referir aos que a cor não permite estar rodeada pelas cordas.



Já que citei a polícia vamos até ela, que estava lá pra garantir a proteção e segurança dos foliões; porém, acredito que falta uma pergunta fundamental para entender melhor a ação dela: a polícia estava lá pra garantir a proteção e segurança de quem, de que cor? Agora sim, fica mais fácil a visualização no contraste das cores, e quem presenciou de perto os espancamentos e as abordagens truculentas da polícia pode afirmar com toda convicção que o cassetete dos policiais escolhe, e muito bem escolhido, a cor a ser protegida e a cor a ser criminalizada, pois o que se permite ao branco se converte em destrato e humilhação ao preto. Uma das coisas que impressionam é que esses “promotores da paz e da ordem”, contraditoriamente, não se reconhecem na cor dos “criminosos”.

As contradições não param por aí. Basta esperar o belo nascer do sol para que se apresentem cenas não tão belas, acontecimentos que passam despercebidos na multidão e escuridão da noite se evidenciam ao primeiro raio de sol. Uma simples caminhada pelo famoso Beco de Ondina ou por qualquer beco transversal à avenida era suficiente para observar famílias inteiras descansando nas calçadas imundas em barracas improvisadas ou ao relento depois do trabalho noturno. É importante dizer que essas famílias também têm cor muito bem definida e o trabalho delas se constitui em catar o ouro (ou, melhor dizendo, alumínio) que para todo o restante é lixo.

Por fim, o que me deixou demasiadamente intrigado foi o fato de que frente a tudo isso as pessoas não conseguiam conter a felicidade. Quem batia e quem apanhava, por incrível que pareça, estava feliz, era um misto de dor e gozo proporcionado pela permissividade. Essa felicidade se expressava das formas mais variadas e peculiares, contagiando o ambiente. Até a polícia, aquela mesma que bate, arriscou alguns passos ao som do Psirico, o mesmo Psirico que desce arrastando multidões que devem ter sua euforia contida pela polícia. E tudo isso não é de se estranhar por que, afinal de contas, é carnaval.    



José Caetano (Calouro) é estudante de Economia e morador da República Revolucionária Fundo do Mar

3 comentários:

6 de março de 2010 às 08:48 Marcos Rosa disse...

Por alguns instantes o carnaval de Salvador é mais surreal que um filme de Q. Tarantino, no que tange a violência. Porém, no fim o que se destaca com mais nitidez é a triste alegria dos cordeiros e catadores de latinhas que, em meio aquela festa toda, para aonde não foram convidados, ganham o pão de cada dia. Assim como os policiais, mas estes foram convidados para assegurar números melhores nas estatística da violência. Na quinta-feira esses números serão muito importantes...

8 de março de 2010 às 13:45 Unknown disse...

sugestao a audiçao de Cidadao, cantada por Moraes Moreira, primeiro puxador de trio...num sei de qual carnaval falava mas sei que a minha gente baiana continua gozando mesmo que doa.
Eu quero ver qdo Zumbi chegar!

12 de março de 2010 às 05:50 Poeta Popular disse...

caetano, muito bom esse texto.

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