Contra a organização da miséria


Permitam-me apresentar-me: meu nome é Johnny Boy. As regras da língua me obrigam a utilizar ênclises duas vezes seguidas; não me soa bem, mas não vejo alternativas outras. Sou um detetive baiano, mas para criar minha própria marca não preciso me utilizar de sotaques fortes ou expressões típicas. Sou um alter-ego de João Daniel, membro da Transa Revista. Às vezes surjo para tentar desvendar grandes mistérios dessa Feira de Santana. Para mim, não há Nova York, Paris, Rio de Janeiro certos – Feira é a representação de todas as cidades do mundo. Hoje, neste primeiro relato, venho para tentar descobrir quem é o lendário parafraseador da frase que dá título ao meu texto.

Se você, caro leitor, costuma passar pela Avenida José Falcão, a pé ou dentro de um automóvel, notará, se possuir perspicácia para tal, uma pichação/um pichamento num muro branco bem grande, próximo aos prédios e condomínios que ambientam o Conjunto do Centenário do bairro da Queimadinha. Ela, em letras garrafais, finas e redondas, mostra a já referida frase-título e também revela seu autor: o poeta chileno Pablo Neruda. A primeira vez que vi me assustei: não conhecia a frase e esta me pareceu um tanto incoerente. Como assim “organização da miséria”? Existe miséria organizada? A crítica está sendo feita a quem? Ou, para além de uma crítica, é apenas um dito jocoso em seu típico - mas para nós, insólito - humor chileno?




Tentando descobrir quem poderia ter pichado (ou, em sua tradução eufemística, “grafitado”) esta frase tão impactante, resolvi flanar pelas ruas quadriláteras de Feira de Santana. Eis que, no centro da cidade, encontro, no mesmo tom agressivo de caligrafia, outra arte do anônimo: “Contra o sistema que reparte a fome – Neruda”. Por Deus que eu me intriguei, por Deus! O homem ou mulher estava pondo sua marca em toda a cidade, e parecia que ninguém jamais o descobriria. Percebi que era mais um trabalho para eu, o Detetive Johnny Boy. Porém, desde já lhes adianto: ainda não sei quem é est@ sujeit@ (um amigo meu me ensinou a dica de usar o arroba para se referir a homens e mulheres, mesmo que o marcador masculino não seja um “o” e o feminino não seja um “a”).


Um belo dia, entretanto, eu estava num ônibus trajetando pelo Sobradinho quando, próximo ao estádio Jóia da Princesa, avisto outra pichação com caligrafia semelhante, mas com a mesma tinta e o mesmo material. Mas, infelizmente ou não, a frase não era de Neruda: era a sigla de uma torcida organizada do famigerado time de futebol local Fluminense de Feira, a TUFT – Torcida Uniformizada Falange Tricolor. Quis descer do ônibus a qualquer custo para analisar minuciosamente aquele muro pichado, mas não consegui. E cheguei à conclusão de que este caso era mais difícil do que eu pensava.

Pretendo coletar mais informações e começar a usar meus recursos especiais para descobrir quem está por trás dessas frases. Para não deixá-los sem nada, adianto uma grande descoberta que fiz hoje mesmo: a alguns dias, eu flanava pela Rua Castro Alves quando, num muro discreto, vi outra pichação aparentemente sem relação com estas. Ela dizia algo sobre punks e skinheads. Hoje, na Maria Quitéria, vi outra pichação, creio que na parede de um bar chamado Massapê. E, assombrosamente, ela falava algo como Streetpunks, a união de punks com skins. E, esta sim, tinha a mesma caligrafia e era do mesmo material das pichações da TUFT, dos punks da Castro Alves, e do citador de Neruda!!!! Isso aparentemente não poderia dizer nada, mas tenho a valiosa informação de que alguns rapazes que estudaram no Colégio Nobre se diziam skins e faziam parte de uma torcida organizada do Fluminense de Feira! Logo, é um skinhead que torce pro Touro do Sertão que está espalhando frases socialistas de Neruda por aí!

No meu próximo relato, com certeza trarei a identidade deste homem. E agora confirmo seu gênero, pois aqui em Feira ainda não existem mulheres que se dizem skinheads e fazem parte de uma torcida organizada do Fluminense de Feira.

Até a próxima.

8 comentários:

31 de janeiro de 2010 às 17:00 Anônimo disse...

Sei não...um skinhead insuflando as pessoas contra a organização da miséria? essa expressão me lembra a "gestão da miséria", expressão do sociólogo francês Loïc Wacquant e toca na questão do segmento mais pobre da sociedade se tornar a "clientela" preferencial do sistema penal. Sua conduta é freqüentemente criminalizada. É o que acontece, por exemplo, com os motoristas e cobradores dos transportes alternativos, ambulantes do feiraguay e da Sales Barbosa, moradores de ocupações (equivocadamente chamadas de "invasões", afinal eles tentam pôr em prática o direito à moradia). Toda essa classe (entendo como uma classe) fica à mercê do rappa e de outros fiscais bem como toda a malha do sistema punitivo. De certo modo, um estado que supre as necessidades básicas dos segmentos mais pobres da população sem viabilizar a sua autonomia também organiza a miséria. Mantém a concentração de riqueza de um pequeno grupo, contribui para camuflar as contradições presentes na nossa sociedade e garante a permanência desse sistema que oprime os que não têm acesso às vias "formais" de produção dos meios de sua subsistência.

***

A BANDEIRA

Levanta-te comigo
(...)
Mas levanta-te,
Tu, levanta-te,
Mas levanta-te comigo
E saiamos juntos
Para a luta corpo a corpo
Contra as teias dos malvados,
Contra o sistema que reparte a fome,
Contra a organização da miséria.

(Pablo Neruda)

31 de janeiro de 2010 às 17:03 Anônimo disse...

olha, onde tem "rappa", favor lembrar do "rapa", ok?

3 de fevereiro de 2010 às 05:12 DSL disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
3 de fevereiro de 2010 às 05:14 DSL disse...

Pois é, Lorena, uma pessoa só ser skinhead, pinchar palavras contra a "organização da miséria" e fazer parte da TUFT, os três ao mesmo tempo, é, de fato, algo improvável. Mas acho que foi justamente por isso que atraiu a perplexidade do nosso Johny Boy.

Embora eu ache que o detetive, pelo bem da transparência profissional, deveria postar as fotas das fatídicas pichações, acompanhadas da devida análise caligráfica. Não concorda?

4 de fevereiro de 2010 às 12:20 Unknown disse...

Camarada!!! ce passou bem longe!!! as letras insolitas esculpidas nos muros e seus autores ressonam ao seu pe do ouvido, se vacilar acabara pisando no spray que poeticamente grafou seu objeto de estudo... POESIA NA PAREDE.... avante a popularização da arte como ferramenta revolucionaria e de liberção... POESIA NA PAREDE... sonhas e sera livre...

12 de fevereiro de 2010 às 02:45 Unknown disse...

D.S.L., não concordo. E você sabe disso. Tropeçando em sprays, com poesia na parede (ou não), gosto de pensar na possibilidade de pularmos o muro das improbabilidades, sem ter de cair no quadradismo das provas, sem suspeição mas, sim, com cumplicidade.

Libertação é um processo. Um moto contínuo. Que sonho.

5 de março de 2010 às 19:38 bob_letras disse...

Vixe,será Marko o pichador(lembrando,pichação é uma coisa,grafite é outra) com frases street-punks e de cunho socialista?
Não,ele não é.Garanto,Johnny Boy.

21 de fevereiro de 2011 às 08:16 Unknown disse...

Boa observação,

Porém lhe falta perspicácia e um pouco de conhecimento sobre movimentos da contra-cultura... Comece pesquisando pelo underground rock Feirense e suas analogias políticas...

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